sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
A Geografia do Prazer
ENSAIO GERAL
Hoje não há Lua e o horizonte está
carregado de nuvens pesadas a anunciar tempestade. Assim não poderemos viajar
ao longo de nós, nem, tão pouco, acariciar os caminhos que se perdem no
infinito desespero das mãos e dos olhos. A estes ofereceremos, então, o sabor
da terra quente acabada de refrescar pelas primeiras chuvas de Verão; àquelas
daremos a tarefa de abrir o pano da boca de cena, para se iniciar o espectáculo
dos sentidos que estas noites escuras costumam ensaiar atrás do palco.
Que personagem incumbiremos de empurrar as nuvens lá para cima, para a teia, deixando que a Lua, em seu quarto minguante, se atravesse na esquerda alta e de lá convide as mãos, ainda tímidas, a iniciar a nocturna viagem do corpo? Talvez o rio, mas logo à saída das fontes, antes de as enxurradas estivais amarelarem a corrente, que tem de ser límpida para desempenhar bem o seu papel. Só assim poderá ele reflectir o último quarto da Lua e iluminar o trajecto dos olhos até aos campos largos da noite, onde o sono e o sonho nem sempre habitam a mesma paz. Por isso plantámos, em tempos, nas margens deste rio belos exemplares de choupo-tremedor para que, à mínima aragem, as suas folhas nos segredem a aproximação das águas claras, ou para, nas noites de Outono, o dourado da sua folhagem reflectir o calmo desejo do corpo, mesmo antes de chegar à foz de todas as sensações.
E quem cumprirá o papel da madrugada? Talvez todos os ribeiros afluentes do corpo, em cujas em cujas margens outrora plantámos vimeiros para amenizar a força das águas invernosas e obter a matéria prima para as peças artesanais que vendíamos nas feiras das redondezas. Os ribeiros vão entrar pela direita baixa para, a seguir, se espalharem por todo o proscénio, até invadirem por completo a cena. Os vimeiros, esses, irão transformar-se em poceiros que, entretanto, usaremos para pescar ‘à calca’ enguias e ruivacos nas locas de ambas as margens. Com o vime descascado também faremos lindas cestas e rendilhadas poceiras que branquearemos dentro de uma arca fechada, defumando-as com enxofre, para depois as levarmos, orgulhosos, ao mercado semanal. Quando todo o palco se cobrir de afluentes e for um só rio, ou espelho, irá reflectir o firmamento das emoções que navegam, também elas, a caminho do oceano de todas as sensações e as mãos, como no início, fecharão o pano de boca e estará terminado o ensaio geral.
Que personagem incumbiremos de empurrar as nuvens lá para cima, para a teia, deixando que a Lua, em seu quarto minguante, se atravesse na esquerda alta e de lá convide as mãos, ainda tímidas, a iniciar a nocturna viagem do corpo? Talvez o rio, mas logo à saída das fontes, antes de as enxurradas estivais amarelarem a corrente, que tem de ser límpida para desempenhar bem o seu papel. Só assim poderá ele reflectir o último quarto da Lua e iluminar o trajecto dos olhos até aos campos largos da noite, onde o sono e o sonho nem sempre habitam a mesma paz. Por isso plantámos, em tempos, nas margens deste rio belos exemplares de choupo-tremedor para que, à mínima aragem, as suas folhas nos segredem a aproximação das águas claras, ou para, nas noites de Outono, o dourado da sua folhagem reflectir o calmo desejo do corpo, mesmo antes de chegar à foz de todas as sensações.
E quem cumprirá o papel da madrugada? Talvez todos os ribeiros afluentes do corpo, em cujas em cujas margens outrora plantámos vimeiros para amenizar a força das águas invernosas e obter a matéria prima para as peças artesanais que vendíamos nas feiras das redondezas. Os ribeiros vão entrar pela direita baixa para, a seguir, se espalharem por todo o proscénio, até invadirem por completo a cena. Os vimeiros, esses, irão transformar-se em poceiros que, entretanto, usaremos para pescar ‘à calca’ enguias e ruivacos nas locas de ambas as margens. Com o vime descascado também faremos lindas cestas e rendilhadas poceiras que branquearemos dentro de uma arca fechada, defumando-as com enxofre, para depois as levarmos, orgulhosos, ao mercado semanal. Quando todo o palco se cobrir de afluentes e for um só rio, ou espelho, irá reflectir o firmamento das emoções que navegam, também elas, a caminho do oceano de todas as sensações e as mãos, como no início, fecharão o pano de boca e estará terminado o ensaio geral.
Entretanto a tempestade acalmou e a Lua reaparece, vagarosa, por detrás da última nuvem da noite, quando os primeiros raios de sol começam a sublinhar os contornos imprecisos da madrugada.
Augusto Mota, texto 83 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
A Geografia do Prazer
LAMENTO
Que metáfora, como onda solitária, varre o
arealda madrugada, mesmo antes de as primeiras pegadas anunciarem as viagens
para sul?
Que onda solitária, como metáfora, varre o
areal da memória, mesmo antes de as viagens para sul anunciarem as primeiras
pegadas?
Tristes lamentações estas de fim de Verão,
quando as viagens já são sem retorno e não deixam na areia da vazante rasto que
nos possa ensinar o caminho de regresso a casa!
Assim, mais vale rumar a norte e esperar
que os ventos propícios nos refresquem os olhos, enquanto as águas mais frias
nos avivam a memória de tudo o que ainda há para fazer: seja adormecer ao som
da lua nova, à beira-mar, seja acordar ao som dos primeiros raios de sol, à
beira das fontes que alimentam o rio, como se alimentassem a vida.
Vamos, pois, lavar as mãos nesta corrente
fria que nos atravessa a garganta e, com elas ainda húmidas, escrever no areal
da memória a metáfora solitária da despedida.
quarta-feira, 13 de novembro de 2013
A Geografia do Prazer
A OFICINA DO TEMPO
A escultura nasce da modelação das formas
que mãos ávidas procuram moldar ao jeito do tempo, contra os limites estreitos
do espaço.
Por isso deliciámos as mãos no barro
fértil que fez surgir, na oficina do tempo, as formas ansiosas de um novo
espaço.
Por isso deliciámos as formas férteis,
surgidas na oficina do tempo, com as mãos ansiosas de um novo espaço.
Por isso deliciámos o espaço fértil,
surgido na oficina do tempo, com as formas ansiosas de novas mãos.
Por isso as mãos férteis surgiram na
oficina do tempo, deliciando o barro ansioso de novas formas em novo espaço.
A memória, como a escultura, nasce da
modelação ávida do tempo, ao jeito dos limites estreitos do espaço.
Augusto Mota, texto 81 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
A Geografia do Prazer
O CERVO
À sombra do Cervo semeámos as
sementes da lua cheia, mas, enquanto a
corrida pela noite fora não incitou a sua germinação, os olhos ficaram a
alimentar-se da paisagem verde que o rio arrastava, vagaroso, até ao mar lá ao
fundo, onde a névoa da manhã brincava com o sol e confundia a verdadeira posse
do horizonte. E assim viveram os olhos entre dois territórios, separados pela
fronteira de um rio, como se as mãos não fossem o veículo justo a caminho de
todos os sentidos de trânsito do corpo.
E o rio, como as mãos, contornava a Ilha
dos Amores que víamos lá em baixo e que íamos modelando, a nosso
bel-prazer, ao sabor da corrente. A distância e a altura eram os instrumentos
precisos e preciosos de um silêncio que entusiasmava o sonho. Os amores, esses,
talvez habitassem algures nessa ilha entre a homenagem ao poeta e os verdes
vários que acalmavam a vista e o ardor das mãos que, pressurosas, ora
caminhavam, como os olhos, pela paisagem, ora pelo corpo do próprio sonho. E
assim não perdemos o direito à realidade que, permanentemente, se atravessava a
nossos pés, deixando que o silêncio e o Cervo se agigantassem ainda mais
para vigiar os atalhos escorregadios do regresso e sugerir os melhores
percursos para a noite, já que a lua cheia, por certo, iria ficar mais propícia
à germinação de todas as sementes.
E o rio, como os olhos, contornava,
depois, uma outra ilha mais pequena, a Boega, parecendo querer dividir as suas carícias
entre as duas, antes de se espreguiçar num mar sem fronteiras, a caminho de
países distantes de onde veio a saudade que invadiu a lua cheia, no
preciso momento em que o sonho reflectia, nas águas prateadas, a memória de
todas as manhãs claras e de todos os gestos que ficaram por anunciar.
Vertiginosas viagens estas pela estrada
larga das palavras que as mãos talharam entre serranias e vales profundos!
Vertiginosas pontes estas sobre todos os rios, a montante e a jusante das mãos
e dos olhos!
O luar, agora, corre apressado a nosso
lado, desenhando no asfalto a velocidade limite para os olhos que conduzem o
corpo pelo espaço apertado da noite. As mãos, essas, mal conseguem adivinhar o
sentido correcto das palavras que, por isso mesmo, se ficam mudas entre os lábios
e o desejo. Talvez as sementes da noite germinem melhor entre a memória e as
mãos banhadas de luz, do que entre as palavras pensadas, mas nunca articuladas!
As viagens são sempre a descoberta de
muita outra coisa para além das cores da noite, ou para além dos sons que
animam a passagem do tempo a caminho de um outro espaço que aguarda, inquieto,
a nossa rendição.
Augusto Mota, texto 80 de «A Geografia do Prazer», 1999
A Geografia do Prazer
A ALIMPA
As mãos, hoje, não descobrem palavras
novas entre as sementes dos dias que passaram em litúrgica ausência. Talvez
atirando ao ar tais sementes consigamos ainda apanhar, no crivo da sorte,
aquelas que o vento não arraste para fora da eira onde decorre a tarefa da
alimpa. As que ficarem na joeira serão como trigo separado do joio e com elas
iremos fazer o pão que alimentará a boca e os olhos. E as mãos? Essas ajudarão
a levedar a massa, a tendê-la e a empoá-la, antes de a colocar na pá que a
levará ao forno. Assim vivem, também, as palavras, arrastadas que são pelos
caminhos da experiência, antes de as enformar e enfornar. Como em forno
comunitário, algumas levam o sinete particular do amassador, para que, depois
de escritas (ou cozidas), se saiba a quem pertencem.
Mas hoje está difícil às mãos encontrarem o
fermento que ritualize o acto da amassadura, ou que os olhos recordem o perfume
que se esvaiu por entre os dedos, como se fosse sal para o bom tempero da
massa. Talvez cobrindo a masseira com mantas e xailes tudo levede mais depressa
e, daqui a pouco, já tenhamos as palavras justas que agora nos faltam.
O pior é se deixamos descair o forno!
Augusto Mota, texto 79 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
A Geografia do Prazer
A REMIÇÃO DAS PALAVRAS
Com os cães adormecidos aos pés das
palavras que vamos escrevendo não há que ter medo da noite, nem apetece
acordá-los para vigiarem bem os tesouros da memória que guardamos atrás do
significado dessas palavras. Mesmo com eles assim quietos ainda conseguimos
caçar algumas recordações boas dos tempos em que o mundo se reduzia ao espaço
visível até às encostas a nascente, onde refugiávamos certas tardes de feição
na inconsciente aventura de escorregar vertiginosamente, em cima de uma tábua,
por um trilho de barro seco e luzidio aberto num acentuado declive, a caminho
de um providencial arbusto de aroeira, lá em baixo,
que amortecia as chegadas menos airosas.
Foi oportuno este sossego dos animais,
pois, na fronteira de um novo dia, chegaram de longe as palavras há muito
esperadas. Palavras onde se adivinhava um rosto coroado de flores campestres.
Palavras trazidas por uma nuvem de falenas atraídas pelo perfume nocturno da
madressilva caprina, que se espalha pelas encostas
soalheiras viradas a poente. Palavras tão intensas como o perfume das flores
que as borboletas da noite polinizam em seu voo apressado. Palavras também
apressadas, mas que floriram em nossas mãos, ainda viradas a sul, a vertigem
das recordações mais antigas.
Embalamos as recordações, e as palavras
vindas de longe, ao ritmo do tempo que nos vai arrastando, suavemente, para lá
do horizonte dos sentidos. E olhamos cada momento como se fosse uma despedida
que imaginamos ser a última. Por isso as mãos ficam sempre arrependidas de não
terem saboreado cada segundo das horas que passam por nós a caminho do nada,
quando julgam estar a construir o tudo. Tudo e nada são extremos
de um universo que fomos moldando à medida do tempo que passámos a
aprender palavras e, depois, a apreender, em proveito próprio, o correcto significado dessas mesmas palavras.
As palavras, como nós, vivem e morrem ao
ritmo do tempo que se escoa por entre os dedos, no espaço que nos redime.
Augusto Mota, texto 78 de «A Geografia do Prazer», 1999
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
A Geografia do Prazer
MIOSÓTIS
Como um anjo persa descemos do trono para
semear, como penitência, miosótis pelos
campos alagados dos territórios da ausência e do sonho. Assim não vamos
esquecer o trajecto dos olhos a caminho de umas mãos agora vazias dos frutos da
véspera. Vamos, pois, esperar pela estação própria, quando na terra húmida
germinar uma delicada renda vegetal para, então, bordar uma coroa de singelas
flores azuis nas mãos frescas da madrugada e, com elas assim enfeitadas, subir
a grande escadaria que antecede o arco-íris de todas as sensações. De lá de
cima espalharemos aos quatro ventos sementes de bonina que também hão-de germinar em abundância por montes e vales, assim perpetuando
a memória dos dias claros.
E pelos bosques do arco-íris descansaremos
os sentidos ao longo de veredas orladas de pervinca,
enquanto aguardamos o desabrochar do azul violáceo de suas flores. Com elas
faremos um filtro raro que acautele a distância do tempo e traga de volta o
feitiço das noites quentes, quando as vozes chegam de longe, de muito longe, de
tão longe que apenas adivinhamos o verdadeiro rosto das palavras, embora o
saibamos coroado de miosótis e de boninas.
E pelos lagos que animam a frescura destes
bosques havemos de procurar o nenúfar e o golfão-amarelo para com os seus pedúnculos e flores, pacientemente,
fazer os colares honoríficos que irão distinguir os bons serviços prestados por
nós mesmos, em nosso próprio proveito.
Assim frutifiquem todas as sementes que
lançámos aos ventos do sonho!
Augusto Mota, texto 77 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória
A Geografia do Prazer
ROTAS MIGRATÓRIAS
Estar longe é estar perto das palavras que
tentam adivinhar os caminhos que, todos os dias, vamos percorrer em direcção ao
Sul, lá onde o calor das mãos não chega para aquecer o rosto que adivinhamos
arrefecido pela aragem da distância. Estar longe é estar perto das emoções
recordadas e vividas pelas esquinas das ruas que percorrem a cidade
transversalmente, a caminho do castelo onde habitam as memórias do corpo. Estar
longe é, ainda, estar perto do que os olhos vão, secretamente, sonhando para
dentro, muito para dentro, cada vez mais para dentro, até que o sono nos atraiçoe e faça o corpo
atravessar, de novo, as paisagens desertas do passado.
O longe e o perto são relações de espaço
que o tempo e a memória anulam a nosso favor. Relações vividas segundo um novo
sistema métrico, que começa e acaba nos limites do nosso próprio corpo, onde,
qual fortaleza avançada, se criam e aperfeiçoam singulares estratégias
defensivas. Por isso viajamos tanto ao encontro do nada e do
tudo! E as mãos e os olhos até já pressentem o significado de cada palavra que
aparece debaixo dos pés, quando, manhã cedo, deixamos o corpo passear,
solitário, à beira-mar. Ou quando, em letras enormes, desenhamos na areia da
vazante o nosso secreto pedido de socorro, à espera que alguma ave migradora
nos veja lá de cima, abandone o bando e nos leve a saudade mais para Sul, para
onde voam a rola e a garça-real,
se os ventos dominantes favorecerem as suas rotas.
Sabemos que o Outono vem longe, mas
devemos estar preparados para, ao primeiro sinal, também levantar voo e deixar
as mãos seguir a rota migratória do sonho que inunda os olhos. Sonho e saudade
são palavras aladas em viagem para Sul.
Aí estarão até que a natureza as chame de novo a habitar as fontes e os montes,
quando a água já correr límpida debaixo da velha nogueira e o orvalho da manhã cintilar nas alvas flores do pilriteiro e nas folhas aromáticas da tomilhinha que atapeta as colinas viradas a poente.
Ajudados pelas palavras, voamos agora ao
encontro do Sul, levados pelo sonho, mas deixámos para trás a saudade, que
ainda há-de alimentar voos mais difíceis, rumo ao Norte.
Augusto Mota, texto 76 de «A Geografia do Prazer», 1999
quarta-feira, 9 de outubro de 2013
A Geografia do Prazer
O BARDO
Vinte vezes ouvimos o bardo lamentar os
desencontros do amor. Vinte vezes vimos Ullin dedilhar a harpa a favor
de Alpin, que já habitava o reino dos mortos, enquanto Minona, irmã
de Morar, ao ouvir os acordes de Ullin, se esconde atrás de uma nuvem, para exercitar
o seu canto de lamentações.
Que murmúrios se escondem nas poucas
sílabas lamentadas ao som da harpa de Ullin? Entristecem tais sons
dedilhados ao arrepio da corrente deste rio e das vagas deste mar que tudo
submerge, quando batido pelos ventos do Outono. E se as folhas dos ulmeiros já rodopiam pelos campos, é o sinal esperado para desferir,
enfunando as velas ao encontro das vozes que, sem cessar, choram Arindal,
filho de Armin.
Que melodia é esta que lamenta os
desencontros do amor? Vinte vezes a ouvimos e vinte vezes a repetimos, enquanto
os heróis de Ossian continuavam os combates pela noite dentro e pela madrugada
fora, até as árvores projectarem no chão sombras temerosas, agigantadas pela aragem forte da
manhã. Sombras que em breve se transformaram na cabeleira esvoaçante da bela Daura,
filha de Armin, esgotando a dor e a vida por Armar, seu amor,
desaparecido entre as vagas e o vento.
Agora a melodia é bem outra: ao som da
‘Opus 45’
de Tchaikovsky agita-se, ao longe, o verde acinzentado dos débeis e caprichosos
ramos dos pinheiros-de-Alepo, mas, de onde estamos,
já não vemos heróis adormecidos à sombra guerreira do passado, a não ser a
silhueta milenar de um ou outro teixo, cujos troncos
ainda ecoam as vitórias e as derrotas das longas batalhas havidas por aquelas colinas à beira-mar. Os mitos, esses, desfizeram-se contra os rochedos e o tempo, como se fossem vagas alterosas durante uma tempestade de sentimentos. Resta às mãos peregrinar pela distância que separa uns olhos cansados de um corpo enternecido pela música que chega de longe, oferecida pela maresia e perfumada pela seiva dos pinheiros debruçados sobre todos os caminhos que levam à cidade.
Assim, acompanhados pela melodia de tais
sentimentos, depressa chegamos às portas que atravessam a muralha e, felizes,
subimos até ao rossio. Não é dia de feira. Tudo está deserto e as mãos
sentem-se bem descansando na frescura das sensações que se alimentam dos aromas
e dos sons que os olhos e a boca vão tacteando, até adormecermos à sombra de um
belo exemplar da Árvore-do-ponto, ou Tulipeira-da-Virgínia, mas, hoje, as suas flores verde e laranja, como se fossem aves
exóticas raras, já não nos angustiam, como dantes, os dias e o saber que íamos
adiando com festas e fitas.
Refeitos do esforço de tanto caminhar,
acordamos para o dia que se extingue e olhamos bem de frente as flores que, também
elas, parecem querer olhar para nós. Colhemos uma só e vamos oferecê-la à
ausência dos dias que, sozinhos, iremos contar um a um, até que esta mesma
flor, nadando solitária em nossas mãos,
se multiplique por mil e nos cubra o corpo todo para, assim, ganharmos raízes e
ramos e voltarmos a adormecer à sombra de nós mesmos, vivendo entre o sonho e a
realidade.
Augusto Mota, texto 75 de «A Geografia do Prazer», 1999
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