sexta-feira, 28 de junho de 2013
A Geografia do Prazer
A HARPA CELTA
Despir os sentimentos é aquecer o corpo junto ao fogo que se vê arder no lar das emoções. É, ainda, repousar os olhos nas estrelas que iluminam os caminhos do universo e desenham a trajectória dos gestos. É, também, ver como as palavras ficam a meio caminho dos desejos e o silêncio incendeia a música que as mãos dedilham nas cordas de uma harpa celta, de onde os sons brotam como água fresca de uma nascente entre seixos lisos e arredondados. É, sobretudo, acariciar o corpo e os sentidos à luz ténue das achas que ardem na fogueira da noite.
Despir os sentimentos é aquecer o corpo junto ao fogo que se vê arder no lar das emoções. É, ainda, repousar os olhos nas estrelas que iluminam os caminhos do universo e desenham a trajectória dos gestos. É, também, ver como as palavras ficam a meio caminho dos desejos e o silêncio incendeia a música que as mãos dedilham nas cordas de uma harpa celta, de onde os sons brotam como água fresca de uma nascente entre seixos lisos e arredondados. É, sobretudo, acariciar o corpo e os sentidos à luz ténue das achas que ardem na fogueira da noite.
As mãos! Sempre as mãos viveram à frente das palavras
e hoje regressaram ao futuro, ao encontro das lendas mágicas que animam os
tesouros escondidos da infância e dos dias passados entre o corpo e a memória.
Ou entre o corpo da memória. Ou entre a memória do corpo. Dessa memória que
vemos alimentar o desejo das mãos, ou o rosto dos dias, e que se atravessa
entre nós e a noite, assim adiando o sono e os percursos do corpo.
Percorremos o corpo desenhando, com os apuros da
técnica, os traços de uma tapeçaria que há-de expor-se no museu dos
sentimentos, que hoje despimos à luz da fogueira. Por isso derramámos cores
várias e quentes pelos espaços brancos e livres, compondo uma sinfonia de
formas e tons que a melodia da harpa harmonizava ainda mais. E os gestos saíam
precisos e preciosos. E a obra ia ganhando a dimensão do nosso desejo, até sair
dos limites apertados do tear electrónico onde os fios da teia e da urdidura se
foram transformando nas distantes constelações que habitam lá para os lados da
Estrela Polar. Ainda programámos a máquina com novas latitudes e longitudes,
mas já não conseguimos reaver as linhas mestras da obra que fomos compondo ao
longo da noite. Apenas vivem em nós as cores e os sons que animarão o museu de
todos os sentimentos.
Todas as noites de céu estrelado havemos
de olhar o infinito em busca das
constelações que hoje desenhámos no universo das emoções.
Augusto Mota, texto 52 de «A Geografia do Prazer», 1999
A Geografia do Prazer
MARINHEIROS DO SILÊNCIO
Sozinho, no porão dos livros, revejo a
eternidade içada como bandeira, por longos segundos, no mastro mais alto da
embarcação em que navego os mares e os dias à procura da ilha onde, uma vez,
também já aportei em tempo de lua nova. Este luar frio e seco de Inverno
ilumina tudo por onde passa e aquece, até, os caminhos do corpo que
serpenteiam, como as sensações, em torno dos cumes do prazer que a noite e o
silêncio secretamente sublimam. Marinheiros do silêncio somos todos quantos
buscamos a realidade nas paisagens do sonho, vivendo os dias que nos
ultrapassam a disfarçar as rotas da aventura.
Sozinho, evoco o sabor da viagem e de como
do cesto da gávea avistei, por entre a bruma do anoitecer, uma ilha perdida no
horizonte. Mudámos, por isso, de rota e, aproveitando o vento de feição, para
lá navegámos a todo o pano. Gritámos alto o achamento inesperado, pois a viagem
adivinhava-se mais longa e mais cheia de privações. A ilha, como um corpo adormecido, estendia-se
ao luar que, suavemente, ia desenhando os contornos da noite por entre montes e
vales. Mais perto avistámos os caminhos imprevistos que rodeavam os segredos da
noite. Tudo ficou bem nítido quando sentimos o prazer da terra firme e fizemos
escorrer por entre os dedos a areia fina da praia, como se as mãos fossem um
relógio que medisse os longos segundos da eternidade.
Sozinho, percorro, de memória, as pegadas
deixadas à beira-mar, longe da rebentação dos dias, e escondo debaixo da árvore
mais perfumada da noite o tesouro e o mapa da aventura. Assim ficará a salvo
dos piratas das recordações íntimas e dos temporais que varrem estes mares
interiores.
Um dia, sozinhos, acharemos a árvore que
alimenta e perfuma a arca onde guardámos
os longos segundos da eternidade e, com o mapa da aventura em nossas mãos,
vigiaremos o despertar subtil da madrugada.
Augusto Mota, texto 51 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
quarta-feira, 26 de junho de 2013
A Geografia do Prazer
A CURVA DOS DIAS
Enquanto o sol aquecia o vento que agitava
as heras do muro velho revimos os enxertos do ano passado e aliviámos-lhes as
cicatrizes das feridas forçadas. A operação de enxertia apanhou a Lua de feição
e a cura, agora, está em franco progresso. Em breve teremos frutos robustecidos
pelo cruzamento celular de ambos os sexos e, então, à sombra de uma frondosa
pérgola de kiwis hermafroditas, haveremos de beber do melhor vinho e comer do
melhor presunto com um bom naco de pão alentejano. Depois dormiremos uma sesta
reparadora e sonharemos com os sonhos antigos desfeitos pelo presente. E
sonharemos com o presente que ainda não foi desfeito pelos pesadelos do
passado.
O pão, o vinho e os frutos do estio
alimentarão as enxertias da nossa memória de ontem com as desilusões de hoje e,
assim, redimiremos as mãos que tanto trabalharam as ideias que nos enchiam a
cabeça e as conversas silenciosas à mesa do café, ou pelas vielas solitárias da
noite. Os traços e as cores que incendiavam os papéis diziam mais do que as
palavras que nunca dissemos. E os jornais que multiplicavam a arquitectura das
nossas cidades sitiadas eram o lenitivo para o arrastar húmido e cinzento dos
dias. Por isso inventámos metáforas de cidades e de mulheres. Por isso povoámos as praças de anseios e as
torres da barbacã de atentos vigilantes do nosso absurdo. E sobre essas cidades
do passado fizemos pairar poetas e pombas, que levavam longe as mensagens
secretas da vitória.
Hoje a vitória é outra, mas vive ainda
presa às ideias que germinam nas mãos que enxertam as palavras com novos
significados. Ou que enxertam nas árvores os frutos da nossa experiência para,
um dia, saborearmos tudo - os novos
significados e os novos frutos - à mesa do tempo, debaixo de uma pérgola
permanentemente em flor, enquanto o sol aquece o vento e agita as heras do muro
velho do pátio da nossa vida.
A vida, como a casa, resume-se, afinal, a
um pátio onde aquecemos os pés ao sol das recordações, abrigados do vento e a
imaginar, com saudade, a sombra das árvores a ultrapassar o círculo que os
nossos gestos foram traçando no chão, até fecharem a curva dos dias que ainda
nos pertencem.
Augusto Mota, texto 50 de «A Geografia do Prazer», 1999
quinta-feira, 20 de junho de 2013
A Geografia do Prazer
O ARTIFÍCIO DO JARDINEIRO
A surpresa dos encontros ocasionais sob a
ramagem da magnólia faz abrir mais
suavemente o tom púrpura das suas flores, como se as mãos estivessem a
acariciar as cores aveludadas de cada pétala à luz fria de um fim de tarde de
Inverno. Mas é esta luz rasante que dá um relevo inesperado às copas das
árvores, esculpindo um rendilhado de sensações que se escapam por entre os
dedos e as flores, enquanto os olhos percorrem todo o jardim e os montes em volta. Sobre o
relvado, debruado a escalónia recém-aparada,
estende-se um tapete circular de pétalas
rosadas que as flores envelhecidas da magnólia foram deixando cair ao longo da
semana. Sobre ele passeamos as emoções que atormentam as vigílias forçadas e
recordamos as sestas primaveris debaixo desta árvore jovem, ou a mera
contemplação do céu azul por entre um emaranhado de ramos, de folhas e de
algumas flores.
Agora a luz já é diferente e realça o corte que o artifício do jardineiro
deu a todas as sebes. Sabe bem pousar as mãos na verdura macia e fazer subir
até nós o odor forte dos arbustos acabados de cortar. Saboreamos, por isso, a
delicadeza dos volumes que mãos hábeis desenharam neste espaço verde da
esperança e aguardamos que a noite seja propícia a festejar as recordações do
dia com um licor de ervas aromáticas.
O perfume destas ervas é uma outra maneira
de esculpir sensações no terreno agreste dos sonhos sem memória. Por esta razão
cultivamos mil aromas nos canteiros do nosso jardim e com eles surpreendemos os
acasos felizes a qualquer hora do dia, mesmo que a magnólia já não incendeie o
ar e ofereça, apenas, a sombra da sua folhagem para a sesta dos nossos olhos.
Depois de refeitos com tal descanso
saberemos caminhar, mais felizes, pelos atalhos perfumados deste nosso jardim
interior.
Augusto Mota, texto 49 de «A Geografia do Prazer», 1999
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