quarta-feira, 13 de novembro de 2013
A Geografia do Prazer
A OFICINA DO TEMPO
A escultura nasce da modelação das formas
que mãos ávidas procuram moldar ao jeito do tempo, contra os limites estreitos
do espaço.
Por isso deliciámos as mãos no barro
fértil que fez surgir, na oficina do tempo, as formas ansiosas de um novo
espaço.
Por isso deliciámos as formas férteis,
surgidas na oficina do tempo, com as mãos ansiosas de um novo espaço.
Por isso deliciámos o espaço fértil,
surgido na oficina do tempo, com as formas ansiosas de novas mãos.
Por isso as mãos férteis surgiram na
oficina do tempo, deliciando o barro ansioso de novas formas em novo espaço.
A memória, como a escultura, nasce da
modelação ávida do tempo, ao jeito dos limites estreitos do espaço.
Augusto Mota, texto 81 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
A Geografia do Prazer
O CERVO
À sombra do Cervo semeámos as
sementes da lua cheia, mas, enquanto a
corrida pela noite fora não incitou a sua germinação, os olhos ficaram a
alimentar-se da paisagem verde que o rio arrastava, vagaroso, até ao mar lá ao
fundo, onde a névoa da manhã brincava com o sol e confundia a verdadeira posse
do horizonte. E assim viveram os olhos entre dois territórios, separados pela
fronteira de um rio, como se as mãos não fossem o veículo justo a caminho de
todos os sentidos de trânsito do corpo.
E o rio, como as mãos, contornava a Ilha
dos Amores que víamos lá em baixo e que íamos modelando, a nosso
bel-prazer, ao sabor da corrente. A distância e a altura eram os instrumentos
precisos e preciosos de um silêncio que entusiasmava o sonho. Os amores, esses,
talvez habitassem algures nessa ilha entre a homenagem ao poeta e os verdes
vários que acalmavam a vista e o ardor das mãos que, pressurosas, ora
caminhavam, como os olhos, pela paisagem, ora pelo corpo do próprio sonho. E
assim não perdemos o direito à realidade que, permanentemente, se atravessava a
nossos pés, deixando que o silêncio e o Cervo se agigantassem ainda mais
para vigiar os atalhos escorregadios do regresso e sugerir os melhores
percursos para a noite, já que a lua cheia, por certo, iria ficar mais propícia
à germinação de todas as sementes.
E o rio, como os olhos, contornava,
depois, uma outra ilha mais pequena, a Boega, parecendo querer dividir as suas carícias
entre as duas, antes de se espreguiçar num mar sem fronteiras, a caminho de
países distantes de onde veio a saudade que invadiu a lua cheia, no
preciso momento em que o sonho reflectia, nas águas prateadas, a memória de
todas as manhãs claras e de todos os gestos que ficaram por anunciar.
Vertiginosas viagens estas pela estrada
larga das palavras que as mãos talharam entre serranias e vales profundos!
Vertiginosas pontes estas sobre todos os rios, a montante e a jusante das mãos
e dos olhos!
O luar, agora, corre apressado a nosso
lado, desenhando no asfalto a velocidade limite para os olhos que conduzem o
corpo pelo espaço apertado da noite. As mãos, essas, mal conseguem adivinhar o
sentido correcto das palavras que, por isso mesmo, se ficam mudas entre os lábios
e o desejo. Talvez as sementes da noite germinem melhor entre a memória e as
mãos banhadas de luz, do que entre as palavras pensadas, mas nunca articuladas!
As viagens são sempre a descoberta de
muita outra coisa para além das cores da noite, ou para além dos sons que
animam a passagem do tempo a caminho de um outro espaço que aguarda, inquieto,
a nossa rendição.
Augusto Mota, texto 80 de «A Geografia do Prazer», 1999
A Geografia do Prazer
A ALIMPA
As mãos, hoje, não descobrem palavras
novas entre as sementes dos dias que passaram em litúrgica ausência. Talvez
atirando ao ar tais sementes consigamos ainda apanhar, no crivo da sorte,
aquelas que o vento não arraste para fora da eira onde decorre a tarefa da
alimpa. As que ficarem na joeira serão como trigo separado do joio e com elas
iremos fazer o pão que alimentará a boca e os olhos. E as mãos? Essas ajudarão
a levedar a massa, a tendê-la e a empoá-la, antes de a colocar na pá que a
levará ao forno. Assim vivem, também, as palavras, arrastadas que são pelos
caminhos da experiência, antes de as enformar e enfornar. Como em forno
comunitário, algumas levam o sinete particular do amassador, para que, depois
de escritas (ou cozidas), se saiba a quem pertencem.
Mas hoje está difícil às mãos encontrarem o
fermento que ritualize o acto da amassadura, ou que os olhos recordem o perfume
que se esvaiu por entre os dedos, como se fosse sal para o bom tempero da
massa. Talvez cobrindo a masseira com mantas e xailes tudo levede mais depressa
e, daqui a pouco, já tenhamos as palavras justas que agora nos faltam.
O pior é se deixamos descair o forno!
Augusto Mota, texto 79 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
A Geografia do Prazer
A REMIÇÃO DAS PALAVRAS
Com os cães adormecidos aos pés das
palavras que vamos escrevendo não há que ter medo da noite, nem apetece
acordá-los para vigiarem bem os tesouros da memória que guardamos atrás do
significado dessas palavras. Mesmo com eles assim quietos ainda conseguimos
caçar algumas recordações boas dos tempos em que o mundo se reduzia ao espaço
visível até às encostas a nascente, onde refugiávamos certas tardes de feição
na inconsciente aventura de escorregar vertiginosamente, em cima de uma tábua,
por um trilho de barro seco e luzidio aberto num acentuado declive, a caminho
de um providencial arbusto de aroeira, lá em baixo,
que amortecia as chegadas menos airosas.
Foi oportuno este sossego dos animais,
pois, na fronteira de um novo dia, chegaram de longe as palavras há muito
esperadas. Palavras onde se adivinhava um rosto coroado de flores campestres.
Palavras trazidas por uma nuvem de falenas atraídas pelo perfume nocturno da
madressilva caprina, que se espalha pelas encostas
soalheiras viradas a poente. Palavras tão intensas como o perfume das flores
que as borboletas da noite polinizam em seu voo apressado. Palavras também
apressadas, mas que floriram em nossas mãos, ainda viradas a sul, a vertigem
das recordações mais antigas.
Embalamos as recordações, e as palavras
vindas de longe, ao ritmo do tempo que nos vai arrastando, suavemente, para lá
do horizonte dos sentidos. E olhamos cada momento como se fosse uma despedida
que imaginamos ser a última. Por isso as mãos ficam sempre arrependidas de não
terem saboreado cada segundo das horas que passam por nós a caminho do nada,
quando julgam estar a construir o tudo. Tudo e nada são extremos
de um universo que fomos moldando à medida do tempo que passámos a
aprender palavras e, depois, a apreender, em proveito próprio, o correcto significado dessas mesmas palavras.
As palavras, como nós, vivem e morrem ao
ritmo do tempo que se escoa por entre os dedos, no espaço que nos redime.
Augusto Mota, texto 78 de «A Geografia do Prazer», 1999
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