sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
A Geografia do Prazer
A FAINA MAIOR
Os comboios partem antes de nos
transportarem ao destino mais conveniente. Sem bilhete, nem moeda corrente,
como num pesadelo, acordamos no cais de embarque de uma apressada estação
ferroviária, estranha e estrangeira, onde não há ligação, em tempo útil, para o
interior de nós.
Há mulheres a abraçar despedidas e a
oferecer os doces tradicionais dos grandes entroncamentos ferroviários. Já não
sabemos para onde vamos. Vamos. E sujeitamo-nos a viajar numa carruagem em jeito
de bancada, na companhia de altas patentes de um exército da noite, como se
assistíssemos à final de um jogo de guerra. Iniciamos a viagem. O revisor
começa a sua tarefa. Sem bilhete, disfarçamos a angústia atrás dos galões
reluzentes dos generais que connosco viajam para um campo de batalha
desconhecido. O revisor, agora também ele general, toma o comando das operações
e o comboio apita em direcção ao cais dos lugres que nos hão-de levar a uma
Terra Nova qualquer, onde a faina maior será a pesca à linha das nossas
próprias emoções.
Os pesadelos da noite antecipam sempre,
teimosamente, as angústias que se alimentam da memória de ontem. Por isso os
dias pesam mais sobre o corpo. Por isso as mãos, exaustas, adormecem junto à
fogueira, quando lhes apeteceria mais traçar, nos mapas do tempo, as rotas de
outras viagens. Por isso os olhos, atentos, se ausentam na distância que vai de
uma estação ao cais da madrugada do dia seguinte. Por isso.
Augusto Mota, texto 103 e último de «A Geografia do Prazer», 2000
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
A Geografia do Prazer
NO CAIS DO TEMPO
Descemos ao Campo sob o calor abafado do
meio da tarde, quando o Sol ainda ia alto e o excesso de luz anulava
o recorte das árvores na paisagem. Pelos caminhos da Bóca, procurámos as
espécies botânicas que pudessem, mais tarde, enfeitar os olhos naqueles
momentos em que todos os horizontes
parecem fechar-se à nossa volta, como se o rio da vida fizesse um círculo e
quisesse regressar às fontes.
Cedo descobrimos as espécies
que melhor iriam resistir ao tempo e às intempéries da alma: bordando um
terreno em pousio, tufos de alho-porro bravo com
as suas flores globulares serviam de contraponto a um maciço de tabúa-larga, ou
foguetes, que, orgulhosos da sua verticalidade,
emergiam das águas estagnadas de uma vala de enxugo. Ali mesmo estimulámos as
mãos com o odor forte de um ramo de alhos silvestres para, logo depois,
exercitar um equilíbrio cauteloso ao colher alguns foguetes sem arriscar um
banho inoportuno. E tudo isto trouxe à memória de hoje os campos alagados do
passado, quando se usavam, depois de secas, as folhas estreitas e compridas da
tabúa-larga para encher colchões - a chamada palha-carga - e os pêlos
das suas densas espigas cilíndricas para encher almofadas.
Era a natureza a incitar à sua própria reciclagem!
Ao longe, a duas léguas de distância, já
se destacava, nítido, o castelo de Leiria a elevar-se por entre o casario da cidade nova.
E de lá, como caminheiro silencioso e dolente, vinha andando o Lis,
permanentemente a resguardar-se de tanto calor à sombra do denso arvoredo que
lhe escondia as águas.
Para trás ficou o rio e o Campo.
Atravessámos a linha férrea como se fosse uma fronteira para outra realidade.
Depois, no cais do tempo, aguardámos ansiosos a chegada de um comboio expresso.
Com o atraso de uma eternidade lá seguimos a caminho de nós mesmos.
Augusto Mota, texto 102 de «A Geografia do Prazer», 2000
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
A Geografia do Prazer
CAMPOS DE ÁGUA
A boca já não pronuncia as palavras que
dantes apareciam à flor dos dedos, ao ritmo ofegante da respiração, enquanto os
olhos se espraiavam por estes campos de água, onde as sementeiras de arroz esperavam dias mais quentes para atapetar de verde o reflexo
intenso da luz de um princípio de tarde.
A boca, agora, desenha nas mãos o mapa de
todos os horizontes que atormentam os olhos claros de tanto reflectirem o
desejo e o voo espantado das aves de grande porte que habitam os pauis do
silêncio. E é pelas mãos fora e pelos campos fora que caminhamos paralelos ao
rio, sempre paralelos ao rio, até ele se esgotar nas sensações que vêm
arrastando o corpo desde a nascente. E que o encaminham, agora vertiginosamente,
até à foz, onde as palavras soçobram entre as vagas da preia-mar.
Que silêncio habita, afinal, estes pauis?
Serão as palavras que, como as sementes, esperam melhores dias para germinar,
ou terá alguma ave de rapina escolhido os melhores significados para adornar o
seu ninho?
Mas este silêncio, sobretudo quando não
deixa falar os olhos, entristece tudo à sua volta. E só os mapas desenhados no
mais secreto das mãos parecem bastar para dar novo alento ao corpo, agora
peregrino e despojado de tudo, ora caminhando pelas ruas desertas da noite, ora
reclinando o cansaço entre as colinas amenas de um fim de tarde.
Uma cegonha-branca,
assustada com a nosso próprio silêncio, ensaia um voo baixo, para depois ganhar
altura e desaparecer para lá das sebes vivas que marginam estes campos de
água.
Augusto Mota, texto 101 de «A Geografia do Prazer», 2000
A Geografia do Prazer
Os olhos viajam sozinhos pelos caminhos da
serra, enquanto a tarde vai diluindo a paisagem no horizonte longínquo, para lá
do rio que nos atravessa o corpo e das pontes que atravessam o rio. Pelas rotas
do cársico remamos, então, sem destino, ao sabor do tempo que escorre lento
pelas aldeias sombreadas do vale. Umas vezes passamos sob as pontes que ligam o passado e o futuro. Outras, passamos
sobre aquelas que nos levam ao encontro do presente. Mas em todas navegamos,
como se a água fosse a via certa para esta memória do presente.
Cruzando pontes, navegamos recordações.
Cruzando recordações, lançamos pontes através dos espaços vazios entre os
dedos, quando estes só servem para contar as horas que sobram para a viagem de
regresso.
Augusto Mota, texto 100 de «A Geografia do Prazer», 2000
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
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