domingo, 15 de setembro de 2013

Textos transversais

 
 


A Geografia do Prazer

 
 
 
RESSACA
 
 
As sensações escorrem pelos braços abaixo e chegam à palma das mãos como se fossem frutos sorvados pelo sol e pelo tempo. Aí se transformam em recordações vivas de todos os momentos passados a acarinhar a árvore que um dia plantámos num jardim de Inverno, ao abrigo das geadas e dos ventos mais agrestes. Aí vivem, num  recanto secreto dos dedos mais ágeis, à espera de alguém que, sabiamente, as faça viajar para lá do corpo onde habitam e, desse modo, regressarem, como flores, a essa árvore que antecipa todas as estações do ano e todas as palavras que adubam as leiras onde germinam as memórias do futuro.
 
Sábio propósito este o de acarinhar as árvores como quem exorta a natureza a produzir os melhores frutos! Frutos que havemos de saborear não em algum recanto secreto dos dedos, mas à beira-mar, num dia quente de Verão, quando o sal cristalizar, em segundos, sobre a pele húmida dos braços. Então abriremos os olhos de espanto e sorveremos o infinito que, como uma onda gigante, arrastará os olhos e a boca pelo areal fora, para além do horizonte, em direcção ao sul de onde viemos.
 
Assim, até onde nos levará esta maré de sensações? Por certo até a um porto seguro onde amarraremos o bote, antes que preia-mar se extinga e fiquemos presos ao fundo de nós mesmos, pois aí não haverá correntes marítimas que desencalhem a angústia do timoneiro. Ou então iremos até à foz e apanharemos o balanço de uma onda para viajar pelo rio acima até onde reponte a maré-cheia, ancorar junto à margem e descansar à sombra dos frondosos amieiros, ouvindo a água marulhar a nossos pés, ou observando os saltos alegres das tainhas, enquanto os guarda-rios  riscam de azul e laranja o seu voo apressado e silencioso, antes de mergulharem a cabeça em busca do melhor peixe .
 
Que natureza esta que voga ao sabor dos dias e da memória! Memória de ontem, de hoje e de sempre, mesmo quando as palavras se misturam com as ondas e são pescadas no rio do tempo, com a ajuda do isco mais conveniente. Então as sílabas saltam da corrente das imagens como se fossem tainhas a exercitar-se para o jogo das palavras, sobretudo das palavras que se agarram às sensações para, depois, escorrerem pelos braços abaixo a caminho da foz, ou da palma das mãos.
  
Secreta natureza esta a das palavras escritas que vivem e morrem nos gestos do corpo, enquanto os olhos acarinham a boca que se ausenta, silenciosa, para parte incerta! 
 
 
Augusto Mota, texto 73 de «A Geografia do Prazer», 1999
 



Textos transversais

 
 


A Geografia do Prazer

 
 
ALITERAÇÃO
 
Secretos segredos são suavemente segredados no sagrado e simbólico silêncio das sílabas sucessiva e sistematicamente soletradas como sustentáculo da supremacia dos sons supostamente sinónimos do supracitado simbolismo do silêncio. Semelhante sinonímia sintetisa a sinuosidade do sistema semiológico singularmente simplista subjacente à supérflua sinalética que supostamente sacraliza um sensacionalismo seguidista  e sentencioso sem o sagaz sexto sentido servo da sensibilidade serena e sincera subentendida nos secretos significados subterraneamente substituídos por sinais singulares e simplificados mas simétricos de situações substantivas saboreadas no sagrado silêncio das palavras.
 
Que secreta repetição invadiu a planície do sonho onde germinam as palavras? Que rigor é este que só rega a raiz das palavras que se alinham nos regos por onde andaram as mãos das mondadeiras? Assim, estiolam as ideias na terra seca e gretada dos campos ensolarados! Assim, as palavras verdes e tenras murcham a meio da tarde, mesmo antes da pausa para a merenda! Talvez o pão e o vinho consigam novo ânimo para os sentidos das sílabas criadas entre a infância e a memória. Talvez o cheiro da fruta perfumando um quarto de dormir nos faça sonhar sobre a areia macia da praia, mesmo que tarde a maré-cheia dos sentimentos que guardámos para, um dia, lançar ao vento suão como se fossem papagaios coloridos presos ao fio invisível da pré-história das recordações.
 
Sagrada fruta a que se guarda no silêncio de um quarto onde dormem os perfumes secretos que simbolicamente invadem as mãos e os olhos! Não sabemos que supremacia é esta que as palavras subitamente nos impuseram. Nem sabemos o que louvar mais, se a gramática, se os olhos que acariciam os gestos e prolongam o sonho e o tempo!
 
E a dor? A dor alimenta o sonho e, como um rio tempestuoso, avassala as mãos que tremem e já não desenham o significante das palavras que, assim, se vão acumulando em traços sem significado, enquanto o olhar vagueia, tímido, pelos caminhos incertos do tempo.
 
Só o sonho segura as mãos trémulas para, com firmeza, lavrar os regos na planície onde germinará, sem ervas daninhas, a sementeira de todas as palavras que, no silêncio do olhar, havemos de segredar ao futuro.
 
Augusto Mota, texto 72 de «A Geografia do Prazer», 1999
 

Textos transversais

 
 


A Geografia do Prazer



VIAGEM CÓSMICA


Mil vezes percorremos a distância entre o Sol e a Lua. Mil vezes repetimos o trajecto que vai de uma mão a outra mão. E mil vezes repetimos no corpo da noite os nomes femininos de todas as constelações do universo conhecido e desconhecido. Por Andrómeda andámos. Junto de Cassiopeia descansámos o corpo e os olhos fatigados das estrelas que atravessámos à velocidade da luz. Mas em Lira ouvimos a máquina do mundo rodar em torno de Vega, a estrela que marcou o caminho para o desconhecido de nós.

Tantas vezes redimimos o olhar e os gestos, no justo espaço entre as constelações, que fácil foi encontrar a Estrela Polar no alinhamento de Merak e Dubhe. Muito para trás ficaram Alkaïd, Mizar, Alioth, Megrez e Phecda, como se o Carro celeste tivesse parado a meio da viagem, ou quisesse favorecer o nosso trânsito a caminho de Alfa de Centauro.

Que vertigem foi esta que comprometeu equinócios e solstícios? Estávamos em Julho e a carta do firmamento parecia indicar a posição das estrelas nos meses de Inverno! Por isso ficámos confusos. Por isso tivemos de deixar as mãos seguir outro curso, voltar atrás e atravessar a Cabeleira de Berenice para desenhar, na véspera do corpo, o modelo de astrolábio que nos permitisse calcular, com precisão, a latitude e a hora sideral do lugar onde moram os desejos mais íntimos e as palavras mais secretas.

Como sábios do espaço e da noite festejámos todos os achamentos. Era como se viajássemos num veleiro pela rota das estrelas visíveis. Não havia medos a assustar o percurso e foi bom aportar em segurança na constelação dos Gémeos. Castor e Pólux foram guias indispensáveis nesta aventura cósmica: com seus rastos brilhantes marcaram o porto onde descemos de velas enfunadas por uma brisa melodiosa. Aí respirámos o sossego e a luz que devorou a noite. Por isso, de repente, se fez dia na palma das mãos que ainda viajavam entre o Sol e o sul. Com força apertámos contra o peito a Lua Nova, deixando o dia claro germinar por entre os dedos até subir aos lábios e, aí, articular uma só palavra: amanhã.         


Augusto Mota, texto 71 de «A Geografia do Prazer», 1999