domingo, 15 de setembro de 2013

A Geografia do Prazer



VIAGEM CÓSMICA


Mil vezes percorremos a distância entre o Sol e a Lua. Mil vezes repetimos o trajecto que vai de uma mão a outra mão. E mil vezes repetimos no corpo da noite os nomes femininos de todas as constelações do universo conhecido e desconhecido. Por Andrómeda andámos. Junto de Cassiopeia descansámos o corpo e os olhos fatigados das estrelas que atravessámos à velocidade da luz. Mas em Lira ouvimos a máquina do mundo rodar em torno de Vega, a estrela que marcou o caminho para o desconhecido de nós.

Tantas vezes redimimos o olhar e os gestos, no justo espaço entre as constelações, que fácil foi encontrar a Estrela Polar no alinhamento de Merak e Dubhe. Muito para trás ficaram Alkaïd, Mizar, Alioth, Megrez e Phecda, como se o Carro celeste tivesse parado a meio da viagem, ou quisesse favorecer o nosso trânsito a caminho de Alfa de Centauro.

Que vertigem foi esta que comprometeu equinócios e solstícios? Estávamos em Julho e a carta do firmamento parecia indicar a posição das estrelas nos meses de Inverno! Por isso ficámos confusos. Por isso tivemos de deixar as mãos seguir outro curso, voltar atrás e atravessar a Cabeleira de Berenice para desenhar, na véspera do corpo, o modelo de astrolábio que nos permitisse calcular, com precisão, a latitude e a hora sideral do lugar onde moram os desejos mais íntimos e as palavras mais secretas.

Como sábios do espaço e da noite festejámos todos os achamentos. Era como se viajássemos num veleiro pela rota das estrelas visíveis. Não havia medos a assustar o percurso e foi bom aportar em segurança na constelação dos Gémeos. Castor e Pólux foram guias indispensáveis nesta aventura cósmica: com seus rastos brilhantes marcaram o porto onde descemos de velas enfunadas por uma brisa melodiosa. Aí respirámos o sossego e a luz que devorou a noite. Por isso, de repente, se fez dia na palma das mãos que ainda viajavam entre o Sol e o sul. Com força apertámos contra o peito a Lua Nova, deixando o dia claro germinar por entre os dedos até subir aos lábios e, aí, articular uma só palavra: amanhã.         


Augusto Mota, texto 71 de «A Geografia do Prazer», 1999
 

Sem comentários:

Enviar um comentário