VIAGEM CÓSMICA
Mil vezes percorremos a distância entre o
Sol e a Lua. Mil vezes repetimos o trajecto que vai de uma mão a outra mão. E
mil vezes repetimos no corpo da noite os nomes femininos de todas as
constelações do universo conhecido e desconhecido. Por Andrómeda andámos. Junto
de Cassiopeia descansámos o corpo e os olhos fatigados das estrelas que
atravessámos à velocidade da luz. Mas em Lira ouvimos a máquina do mundo rodar
em torno de Vega, a estrela que marcou o caminho para o desconhecido de nós.
Tantas vezes redimimos o olhar e os
gestos, no justo espaço entre as constelações, que fácil foi encontrar a
Estrela Polar no alinhamento de Merak e Dubhe. Muito para trás ficaram Alkaïd,
Mizar, Alioth, Megrez e Phecda, como se o Carro celeste tivesse parado a meio
da viagem, ou quisesse favorecer o nosso trânsito a caminho de Alfa de
Centauro.
Que vertigem foi esta que comprometeu
equinócios e solstícios? Estávamos em Julho e a carta do firmamento parecia
indicar a posição das estrelas nos meses de Inverno! Por isso ficámos confusos.
Por isso tivemos de deixar as mãos seguir outro curso, voltar atrás e
atravessar a Cabeleira de Berenice para desenhar, na véspera do corpo, o modelo
de astrolábio que nos permitisse calcular, com precisão, a latitude e a hora
sideral do lugar onde moram os desejos mais íntimos e as palavras mais
secretas.
Como sábios do espaço e da noite
festejámos todos os achamentos. Era como se viajássemos num veleiro pela rota
das estrelas visíveis. Não havia medos a assustar o percurso e foi bom aportar
em segurança na constelação dos Gémeos. Castor e Pólux foram guias
indispensáveis nesta aventura cósmica: com seus rastos brilhantes marcaram o
porto onde descemos de velas enfunadas por uma brisa melodiosa. Aí respirámos o
sossego e a luz que devorou a noite. Por isso, de repente, se fez dia na palma
das mãos que ainda viajavam entre o Sol e o sul. Com força apertámos contra o
peito a Lua Nova, deixando o dia claro germinar por entre os dedos até subir
aos lábios e, aí, articular uma só palavra: amanhã.
Augusto Mota, texto 71 de «A Geografia do Prazer», 1999
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