RESSACA
As sensações escorrem pelos braços abaixo
e chegam à palma das mãos como se fossem frutos sorvados pelo sol e pelo tempo.
Aí se transformam em recordações vivas de todos os momentos passados a
acarinhar a árvore que um dia plantámos num jardim de Inverno, ao abrigo das
geadas e dos ventos mais agrestes. Aí vivem, num recanto secreto dos dedos mais ágeis, à
espera de alguém que, sabiamente, as faça viajar para lá do corpo onde habitam
e, desse modo, regressarem, como flores, a essa árvore que antecipa todas as
estações do ano e todas as palavras que adubam as leiras onde germinam as
memórias do futuro.
Sábio propósito este o de acarinhar as
árvores como quem exorta a natureza a produzir os melhores frutos! Frutos que
havemos de saborear não em algum recanto secreto dos dedos, mas à beira-mar,
num dia quente de Verão, quando o sal cristalizar, em segundos, sobre a pele
húmida dos braços. Então abriremos os olhos de espanto e sorveremos o infinito
que, como uma onda gigante, arrastará os olhos e a boca pelo areal fora, para
além do horizonte, em direcção ao sul de onde viemos.
Assim, até onde nos levará esta maré de
sensações? Por certo até a um porto seguro onde amarraremos o bote, antes que
preia-mar se extinga e fiquemos presos ao fundo de nós mesmos, pois aí não
haverá correntes marítimas que desencalhem a angústia do timoneiro. Ou então
iremos até à foz e apanharemos o balanço de uma onda para viajar pelo rio acima
até onde reponte a maré-cheia, ancorar junto à margem e descansar à sombra dos
frondosos amieiros, ouvindo a água marulhar a nossos
pés, ou observando os saltos alegres das tainhas, enquanto os guarda-rios riscam de azul e laranja o seu voo apressado e silencioso, antes de
mergulharem a cabeça em busca do melhor peixe .
Que natureza esta que voga ao sabor dos
dias e da memória! Memória de ontem, de hoje e de sempre, mesmo quando as
palavras se misturam com as ondas e são pescadas no rio do tempo, com a ajuda
do isco mais conveniente. Então as sílabas saltam da corrente das imagens como
se fossem tainhas a exercitar-se para o jogo das palavras, sobretudo das
palavras que se agarram às sensações para, depois, escorrerem pelos braços
abaixo a caminho da foz, ou da palma das mãos.
Secreta natureza esta a das palavras
escritas que vivem e morrem nos gestos do corpo, enquanto os olhos acarinham a
boca que se ausenta, silenciosa, para parte incerta!
Augusto Mota, texto 73 de «A Geografia do Prazer», 1999
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