quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A Geografia do Prazer

 
 
 
A REMIÇÃO DAS PALAVRAS
 
 
Com os cães adormecidos aos pés das palavras que vamos escrevendo não há que ter medo da noite, nem apetece acordá-los para vigiarem bem os tesouros da memória que guardamos atrás do significado dessas palavras. Mesmo com eles assim quietos ainda conseguimos caçar algumas recordações boas dos tempos em que o mundo se reduzia ao espaço visível até às encostas a nascente, onde refugiávamos certas tardes de feição na inconsciente aventura de escorregar vertiginosamente, em cima de uma tábua, por um trilho de barro seco e luzidio aberto num acentuado declive, a caminho de um providencial arbusto de aroeira, lá em baixo, que amortecia as chegadas menos airosas.
 
Foi oportuno este sossego dos animais, pois, na fronteira de um novo dia, chegaram de longe as palavras há muito esperadas. Palavras onde se adivinhava um rosto coroado de flores campestres. Palavras trazidas por uma nuvem de falenas atraídas pelo perfume nocturno da madressilva caprina, que se espalha pelas encostas soalheiras viradas a poente. Palavras tão intensas como o perfume das flores que as borboletas da noite polinizam em seu voo apressado. Palavras também apressadas, mas que floriram em nossas mãos, ainda viradas a sul, a vertigem das recordações mais antigas.
 
Embalamos as recordações, e as palavras vindas de longe, ao ritmo do tempo que nos vai arrastando, suavemente, para lá do horizonte dos sentidos. E olhamos cada momento como se fosse uma despedida que imaginamos ser a última. Por isso as mãos ficam sempre arrependidas de não terem saboreado cada segundo das horas que passam por nós a caminho do nada, quando julgam estar a construir o tudo. Tudo e nada são extremos de um universo que fomos moldando à medida do tempo que passámos a aprender palavras e, depois, a apreender, em proveito próprio, o  correcto significado dessas mesmas  palavras.
 
As palavras, como nós, vivem e morrem ao ritmo do tempo que se escoa por entre os dedos, no espaço que nos redime. 
 
 
Augusto Mota, texto 78 de «A Geografia do Prazer», 1999 
 

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