A REMIÇÃO DAS PALAVRAS
Com os cães adormecidos aos pés das
palavras que vamos escrevendo não há que ter medo da noite, nem apetece
acordá-los para vigiarem bem os tesouros da memória que guardamos atrás do
significado dessas palavras. Mesmo com eles assim quietos ainda conseguimos
caçar algumas recordações boas dos tempos em que o mundo se reduzia ao espaço
visível até às encostas a nascente, onde refugiávamos certas tardes de feição
na inconsciente aventura de escorregar vertiginosamente, em cima de uma tábua,
por um trilho de barro seco e luzidio aberto num acentuado declive, a caminho
de um providencial arbusto de aroeira, lá em baixo,
que amortecia as chegadas menos airosas.
Foi oportuno este sossego dos animais,
pois, na fronteira de um novo dia, chegaram de longe as palavras há muito
esperadas. Palavras onde se adivinhava um rosto coroado de flores campestres.
Palavras trazidas por uma nuvem de falenas atraídas pelo perfume nocturno da
madressilva caprina, que se espalha pelas encostas
soalheiras viradas a poente. Palavras tão intensas como o perfume das flores
que as borboletas da noite polinizam em seu voo apressado. Palavras também
apressadas, mas que floriram em nossas mãos, ainda viradas a sul, a vertigem
das recordações mais antigas.
Embalamos as recordações, e as palavras
vindas de longe, ao ritmo do tempo que nos vai arrastando, suavemente, para lá
do horizonte dos sentidos. E olhamos cada momento como se fosse uma despedida
que imaginamos ser a última. Por isso as mãos ficam sempre arrependidas de não
terem saboreado cada segundo das horas que passam por nós a caminho do nada,
quando julgam estar a construir o tudo. Tudo e nada são extremos
de um universo que fomos moldando à medida do tempo que passámos a
aprender palavras e, depois, a apreender, em proveito próprio, o correcto significado dessas mesmas palavras.
As palavras, como nós, vivem e morrem ao
ritmo do tempo que se escoa por entre os dedos, no espaço que nos redime.
Augusto Mota, texto 78 de «A Geografia do Prazer», 1999
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