quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A Geografia do Prazer

 
 
 
O CERVO
 
 
À sombra do Cervo semeámos as sementes da lua cheia, mas, enquanto a  corrida pela noite fora não incitou a sua germinação, os olhos ficaram a alimentar-se da paisagem verde que o rio arrastava, vagaroso, até ao mar lá ao fundo, onde a névoa da manhã brincava com o sol e confundia a verdadeira posse do horizonte. E assim viveram os olhos entre dois territórios, separados pela fronteira de um rio, como se as mãos não fossem o veículo justo a caminho de todos os sentidos de trânsito do corpo.
 
E o rio, como as mãos, contornava a Ilha dos Amores que víamos lá em baixo e que íamos modelando, a nosso bel-prazer, ao sabor da corrente. A distância e a altura eram os instrumentos precisos e preciosos de um silêncio que entusiasmava o sonho. Os amores, esses, talvez habitassem algures nessa ilha entre a homenagem ao poeta e os verdes vários que acalmavam a vista e o ardor das mãos que, pressurosas, ora caminhavam, como os olhos, pela paisagem, ora pelo corpo do próprio sonho. E assim não perdemos o direito à realidade que, permanentemente, se atravessava a nossos pés, deixando que o silêncio e o Cervo se agigantassem ainda mais para vigiar os atalhos escorregadios do regresso e sugerir os melhores percursos para a noite, já que a lua cheia, por certo, iria ficar mais propícia à germinação de todas as sementes.
 
E o rio, como os olhos, contornava, depois, uma outra ilha mais pequena, a Boega,  parecendo querer dividir as suas carícias entre as duas, antes de se espreguiçar num mar sem fronteiras, a caminho de países distantes de onde veio a saudade que invadiu a lua cheia, no preciso momento em que o sonho reflectia, nas águas prateadas, a memória de todas as manhãs claras e de todos os gestos que ficaram por anunciar.
 
 
Vertiginosas viagens estas pela estrada larga das palavras que as mãos talharam entre serranias e vales profundos! Vertiginosas pontes estas sobre todos os rios, a montante e a jusante das mãos e dos olhos!
 
 
O luar, agora, corre apressado a nosso lado, desenhando no asfalto a velocidade limite para os olhos que conduzem o corpo pelo espaço apertado da noite. As mãos, essas, mal conseguem adivinhar o sentido correcto das palavras que, por isso mesmo, se ficam mudas entre os lábios e o desejo. Talvez as sementes da noite germinem melhor entre a memória e as mãos banhadas de luz, do que entre as palavras pensadas, mas  nunca articuladas!
 
As viagens são sempre a descoberta de muita outra coisa para além das cores da noite, ou para além dos sons que animam a passagem do tempo a caminho de um outro espaço que aguarda, inquieto, a nossa rendição.
 
 
Augusto Mota, texto 80 de «A Geografia do Prazer», 1999


 

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