O CERVO
À sombra do Cervo semeámos as
sementes da lua cheia, mas, enquanto a
corrida pela noite fora não incitou a sua germinação, os olhos ficaram a
alimentar-se da paisagem verde que o rio arrastava, vagaroso, até ao mar lá ao
fundo, onde a névoa da manhã brincava com o sol e confundia a verdadeira posse
do horizonte. E assim viveram os olhos entre dois territórios, separados pela
fronteira de um rio, como se as mãos não fossem o veículo justo a caminho de
todos os sentidos de trânsito do corpo.
E o rio, como as mãos, contornava a Ilha
dos Amores que víamos lá em baixo e que íamos modelando, a nosso
bel-prazer, ao sabor da corrente. A distância e a altura eram os instrumentos
precisos e preciosos de um silêncio que entusiasmava o sonho. Os amores, esses,
talvez habitassem algures nessa ilha entre a homenagem ao poeta e os verdes
vários que acalmavam a vista e o ardor das mãos que, pressurosas, ora
caminhavam, como os olhos, pela paisagem, ora pelo corpo do próprio sonho. E
assim não perdemos o direito à realidade que, permanentemente, se atravessava a
nossos pés, deixando que o silêncio e o Cervo se agigantassem ainda mais
para vigiar os atalhos escorregadios do regresso e sugerir os melhores
percursos para a noite, já que a lua cheia, por certo, iria ficar mais propícia
à germinação de todas as sementes.
E o rio, como os olhos, contornava,
depois, uma outra ilha mais pequena, a Boega, parecendo querer dividir as suas carícias
entre as duas, antes de se espreguiçar num mar sem fronteiras, a caminho de
países distantes de onde veio a saudade que invadiu a lua cheia, no
preciso momento em que o sonho reflectia, nas águas prateadas, a memória de
todas as manhãs claras e de todos os gestos que ficaram por anunciar.
Vertiginosas viagens estas pela estrada
larga das palavras que as mãos talharam entre serranias e vales profundos!
Vertiginosas pontes estas sobre todos os rios, a montante e a jusante das mãos
e dos olhos!
O luar, agora, corre apressado a nosso
lado, desenhando no asfalto a velocidade limite para os olhos que conduzem o
corpo pelo espaço apertado da noite. As mãos, essas, mal conseguem adivinhar o
sentido correcto das palavras que, por isso mesmo, se ficam mudas entre os lábios
e o desejo. Talvez as sementes da noite germinem melhor entre a memória e as
mãos banhadas de luz, do que entre as palavras pensadas, mas nunca articuladas!
As viagens são sempre a descoberta de
muita outra coisa para além das cores da noite, ou para além dos sons que
animam a passagem do tempo a caminho de um outro espaço que aguarda, inquieto,
a nossa rendição.
Augusto Mota, texto 80 de «A Geografia do Prazer», 1999
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