ROTAS MIGRATÓRIAS
Estar longe é estar perto das palavras que
tentam adivinhar os caminhos que, todos os dias, vamos percorrer em direcção ao
Sul, lá onde o calor das mãos não chega para aquecer o rosto que adivinhamos
arrefecido pela aragem da distância. Estar longe é estar perto das emoções
recordadas e vividas pelas esquinas das ruas que percorrem a cidade
transversalmente, a caminho do castelo onde habitam as memórias do corpo. Estar
longe é, ainda, estar perto do que os olhos vão, secretamente, sonhando para
dentro, muito para dentro, cada vez mais para dentro, até que o sono nos atraiçoe e faça o corpo
atravessar, de novo, as paisagens desertas do passado.
O longe e o perto são relações de espaço
que o tempo e a memória anulam a nosso favor. Relações vividas segundo um novo
sistema métrico, que começa e acaba nos limites do nosso próprio corpo, onde,
qual fortaleza avançada, se criam e aperfeiçoam singulares estratégias
defensivas. Por isso viajamos tanto ao encontro do nada e do
tudo! E as mãos e os olhos até já pressentem o significado de cada palavra que
aparece debaixo dos pés, quando, manhã cedo, deixamos o corpo passear,
solitário, à beira-mar. Ou quando, em letras enormes, desenhamos na areia da
vazante o nosso secreto pedido de socorro, à espera que alguma ave migradora
nos veja lá de cima, abandone o bando e nos leve a saudade mais para Sul, para
onde voam a rola e a garça-real,
se os ventos dominantes favorecerem as suas rotas.
Sabemos que o Outono vem longe, mas
devemos estar preparados para, ao primeiro sinal, também levantar voo e deixar
as mãos seguir a rota migratória do sonho que inunda os olhos. Sonho e saudade
são palavras aladas em viagem para Sul.
Aí estarão até que a natureza as chame de novo a habitar as fontes e os montes,
quando a água já correr límpida debaixo da velha nogueira e o orvalho da manhã cintilar nas alvas flores do pilriteiro e nas folhas aromáticas da tomilhinha que atapeta as colinas viradas a poente.
Ajudados pelas palavras, voamos agora ao
encontro do Sul, levados pelo sonho, mas deixámos para trás a saudade, que
ainda há-de alimentar voos mais difíceis, rumo ao Norte.
Augusto Mota, texto 76 de «A Geografia do Prazer», 1999
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