quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A Geografia do Prazer




ROTAS MIGRATÓRIAS
 
 
Estar longe é estar perto das palavras que tentam adivinhar os caminhos que, todos os dias, vamos percorrer em direcção ao Sul, lá onde o calor das mãos não chega para aquecer o rosto que adivinhamos arrefecido pela aragem da distância. Estar longe é estar perto das emoções recordadas e vividas pelas esquinas das ruas que percorrem a cidade transversalmente, a caminho do castelo onde habitam as memórias do corpo. Estar longe é, ainda, estar perto do que os olhos vão, secretamente, sonhando para dentro, muito para dentro, cada vez mais para dentro, até  que o sono nos atraiçoe e faça o corpo atravessar, de novo, as paisagens desertas do passado.
 
O longe e o perto são relações de espaço que o tempo e a memória anulam a nosso favor. Relações vividas segundo um novo sistema métrico, que começa e acaba nos limites do nosso próprio corpo, onde, qual fortaleza avançada, se criam e aperfeiçoam singulares estratégias defensivas. Por isso viajamos tanto ao encontro do nada e do tudo! E as mãos e os olhos até já pressentem o significado de cada palavra que aparece debaixo dos pés, quando, manhã cedo, deixamos o corpo passear, solitário, à beira-mar. Ou quando, em letras enormes, desenhamos na areia da vazante o nosso secreto pedido de socorro, à espera que alguma ave migradora nos veja lá de cima, abandone o bando e nos leve a saudade mais para Sul, para onde voam a rola e a garça-real, se os ventos dominantes favorecerem as suas rotas.

Sabemos que o Outono vem longe, mas devemos estar preparados para, ao primeiro sinal, também levantar voo e deixar as mãos seguir a rota migratória do sonho que inunda os olhos. Sonho e saudade são palavras aladas em viagem para  Sul. Aí estarão até que a natureza as chame de novo a habitar as fontes e os montes, quando a água já correr límpida debaixo da velha nogueira e o orvalho da manhã cintilar nas alvas flores do pilriteiro e nas folhas aromáticas da tomilhinha que  atapeta as colinas viradas a poente.

Ajudados pelas palavras, voamos agora ao encontro do Sul, levados pelo sonho, mas deixámos para trás a saudade, que ainda há-de alimentar voos mais difíceis, rumo ao Norte.
 
 
Augusto Mota, texto 76 de «A Geografia do Prazer», 1999

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