O BARDO
Vinte vezes ouvimos o bardo lamentar os
desencontros do amor. Vinte vezes vimos Ullin dedilhar a harpa a favor
de Alpin, que já habitava o reino dos mortos, enquanto Minona, irmã
de Morar, ao ouvir os acordes de Ullin, se esconde atrás de uma nuvem, para exercitar
o seu canto de lamentações.
Que murmúrios se escondem nas poucas
sílabas lamentadas ao som da harpa de Ullin? Entristecem tais sons
dedilhados ao arrepio da corrente deste rio e das vagas deste mar que tudo
submerge, quando batido pelos ventos do Outono. E se as folhas dos ulmeiros já rodopiam pelos campos, é o sinal esperado para desferir,
enfunando as velas ao encontro das vozes que, sem cessar, choram Arindal,
filho de Armin.
Que melodia é esta que lamenta os
desencontros do amor? Vinte vezes a ouvimos e vinte vezes a repetimos, enquanto
os heróis de Ossian continuavam os combates pela noite dentro e pela madrugada
fora, até as árvores projectarem no chão sombras temerosas, agigantadas pela aragem forte da
manhã. Sombras que em breve se transformaram na cabeleira esvoaçante da bela Daura,
filha de Armin, esgotando a dor e a vida por Armar, seu amor,
desaparecido entre as vagas e o vento.
Agora a melodia é bem outra: ao som da
‘Opus 45’
de Tchaikovsky agita-se, ao longe, o verde acinzentado dos débeis e caprichosos
ramos dos pinheiros-de-Alepo, mas, de onde estamos,
já não vemos heróis adormecidos à sombra guerreira do passado, a não ser a
silhueta milenar de um ou outro teixo, cujos troncos
ainda ecoam as vitórias e as derrotas das longas batalhas havidas por aquelas colinas à beira-mar. Os mitos, esses, desfizeram-se contra os rochedos e o tempo, como se fossem vagas alterosas durante uma tempestade de sentimentos. Resta às mãos peregrinar pela distância que separa uns olhos cansados de um corpo enternecido pela música que chega de longe, oferecida pela maresia e perfumada pela seiva dos pinheiros debruçados sobre todos os caminhos que levam à cidade.
Assim, acompanhados pela melodia de tais
sentimentos, depressa chegamos às portas que atravessam a muralha e, felizes,
subimos até ao rossio. Não é dia de feira. Tudo está deserto e as mãos
sentem-se bem descansando na frescura das sensações que se alimentam dos aromas
e dos sons que os olhos e a boca vão tacteando, até adormecermos à sombra de um
belo exemplar da Árvore-do-ponto, ou Tulipeira-da-Virgínia, mas, hoje, as suas flores verde e laranja, como se fossem aves
exóticas raras, já não nos angustiam, como dantes, os dias e o saber que íamos
adiando com festas e fitas.
Refeitos do esforço de tanto caminhar,
acordamos para o dia que se extingue e olhamos bem de frente as flores que, também
elas, parecem querer olhar para nós. Colhemos uma só e vamos oferecê-la à
ausência dos dias que, sozinhos, iremos contar um a um, até que esta mesma
flor, nadando solitária em nossas mãos,
se multiplique por mil e nos cubra o corpo todo para, assim, ganharmos raízes e
ramos e voltarmos a adormecer à sombra de nós mesmos, vivendo entre o sonho e a
realidade.
Augusto Mota, texto 75 de «A Geografia do Prazer», 1999
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