quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A Geografia do Prazer

 
 
 
QUINTA SINFONIA
 
 
Beethoven excita tanto os sentidos como se fosse uma tempestade de sons a fazer-nos repetir a palavra mágica de Charlotte: Klopstock! E  com os sons fortes desta tormenta vem a saudade de caminhar para trás, muito para trás, ao encontro dos dias que já passaram por nós e deixaram nos olhos  as lágrimas que secaram na garganta muitas palavras que, por isso mesmo, nunca foram pronunciadas. Poderíamos, então, ter pensado em ode, ou em sublime, mas nem estas conseguimos articular. Poderíamos ter oferecido ao silêncio palavras mais prosaicas, mas nem essas as lágrimas conseguiram rejuvenescer.
 
Só estes sons que invadem a paisagem, e se desdobram em ritmos violentos pelos caminhos que ainda temos de percorrer, conseguem arrastar-nos para a nova aventura dos dias, como se o rio e o mar se encontrassem na palma das mãos para, depois, fazerem do corpo o oceano imenso que várias vezes sulcámos em direcção a latitudes mais a sul. Só estes sons, em crescendo violentamente repetido, conseguem iluminar a rota de todas as viagens empreendidas entre um silêncio e um olhar, entre uma sensação e outra recordação.
 
Colma, Ryno, Alpin, Armin - dramáticas personagens de um enredo de palavras e sentimentos à flor da pele do bardo Ossian, ou ao sabor romântico de Macpherson! Míticas personagens a aguardar um outro diário, mas, agora, feito de todas as memórias que vivem para lá das emoções de Werther e que não se esgotam no existir dos dias, antes rejuvenescem as palavras que, como sangue, serenamente percorrem as artérias do corpo à espera de uma secreta redenção, talvez em Golma, o reino de Armin, circundado pelas vagas da tristeza e da esperança.
 
Beethoven excita tanto os sentidos como se fosse uma tempestade de sons a fazer-nos repetir a apoteose que Werther sentiu ao ouvir  a palavra  mágica, enquanto o olhar de Charlotte divagava pela paisagem além, atrás do eco da sua própria paixão. Klopstock! 
 
 
Augusto Mota, texto 74 de «A Geografia do Prazer», 1999
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
 

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