MIOSÓTIS
Como um anjo persa descemos do trono para
semear, como penitência, miosótis pelos
campos alagados dos territórios da ausência e do sonho. Assim não vamos
esquecer o trajecto dos olhos a caminho de umas mãos agora vazias dos frutos da
véspera. Vamos, pois, esperar pela estação própria, quando na terra húmida
germinar uma delicada renda vegetal para, então, bordar uma coroa de singelas
flores azuis nas mãos frescas da madrugada e, com elas assim enfeitadas, subir
a grande escadaria que antecede o arco-íris de todas as sensações. De lá de
cima espalharemos aos quatro ventos sementes de bonina que também hão-de germinar em abundância por montes e vales, assim perpetuando
a memória dos dias claros.
E pelos bosques do arco-íris descansaremos
os sentidos ao longo de veredas orladas de pervinca,
enquanto aguardamos o desabrochar do azul violáceo de suas flores. Com elas
faremos um filtro raro que acautele a distância do tempo e traga de volta o
feitiço das noites quentes, quando as vozes chegam de longe, de muito longe, de
tão longe que apenas adivinhamos o verdadeiro rosto das palavras, embora o
saibamos coroado de miosótis e de boninas.
E pelos lagos que animam a frescura destes
bosques havemos de procurar o nenúfar e o golfão-amarelo para com os seus pedúnculos e flores, pacientemente,
fazer os colares honoríficos que irão distinguir os bons serviços prestados por
nós mesmos, em nosso próprio proveito.
Assim frutifiquem todas as sementes que
lançámos aos ventos do sonho!
Augusto Mota, texto 77 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória
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