A FAINA MAIOR
Os comboios partem antes de nos
transportarem ao destino mais conveniente. Sem bilhete, nem moeda corrente,
como num pesadelo, acordamos no cais de embarque de uma apressada estação
ferroviária, estranha e estrangeira, onde não há ligação, em tempo útil, para o
interior de nós.
Há mulheres a abraçar despedidas e a
oferecer os doces tradicionais dos grandes entroncamentos ferroviários. Já não
sabemos para onde vamos. Vamos. E sujeitamo-nos a viajar numa carruagem em jeito
de bancada, na companhia de altas patentes de um exército da noite, como se
assistíssemos à final de um jogo de guerra. Iniciamos a viagem. O revisor
começa a sua tarefa. Sem bilhete, disfarçamos a angústia atrás dos galões
reluzentes dos generais que connosco viajam para um campo de batalha
desconhecido. O revisor, agora também ele general, toma o comando das operações
e o comboio apita em direcção ao cais dos lugres que nos hão-de levar a uma
Terra Nova qualquer, onde a faina maior será a pesca à linha das nossas
próprias emoções.
Os pesadelos da noite antecipam sempre,
teimosamente, as angústias que se alimentam da memória de ontem. Por isso os
dias pesam mais sobre o corpo. Por isso as mãos, exaustas, adormecem junto à
fogueira, quando lhes apeteceria mais traçar, nos mapas do tempo, as rotas de
outras viagens. Por isso os olhos, atentos, se ausentam na distância que vai de
uma estação ao cais da madrugada do dia seguinte. Por isso.
Augusto Mota, texto 103 e último de «A Geografia do Prazer», 2000
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
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