quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A Geografia do Prazer





SEGUNDA CRUZADA

A cidade, como um corpo exangue, debruça-se a custo sobre os desejos da alma e parece não vibrar à aproximação do exército. Sitiados, os gestos perdem-se pelas ruas desertas e as mãos, trémulas, percorrem a distância que vai de um medo a outro medo. Só os olhos estão atentos. E neles brilha o calor das fogueiras junto das tardes escuras e chuvosas de Inverno, quando o solstício anuncia o fim de mais um ciclo à volta das nossas próprias recordações.

A boca cansa-se de tanto espanto e as mãos, essas, não sabem se devem correr pela paisagem além, se devem extasiar-se na contemplação da natureza que rodeia a própria cidade, agora que os ventos agrestes sacudiram os ramos frágeis dos araçás e os seus frutos exóticos pontilham de vermelho os secretos caminhos do parque, enquanto os kiwis atapetam de folhas castanhas encarquilhadas as lajes dos terraços em frente da alcáçova. E por esses caminhos nos perdemos, entre a classificação científica de tais frutos e o sabor levemente ácido da sua polpa.

Que batalhas injustas são estas, passadas entre a ciência e o devaneio?

Assim, quantas vitórias mais conseguiremos satisfazer, antes de a contagem dos anos se iniciar por dois? 


 Augusto Mota, texto 96 de «A GEografia do Prazer», 1999 


- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória

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