CAMPOS DE ÁGUA
A boca já não pronuncia as palavras que
dantes apareciam à flor dos dedos, ao ritmo ofegante da respiração, enquanto os
olhos se espraiavam por estes campos de água, onde as sementeiras de arroz esperavam dias mais quentes para atapetar de verde o reflexo
intenso da luz de um princípio de tarde.
A boca, agora, desenha nas mãos o mapa de
todos os horizontes que atormentam os olhos claros de tanto reflectirem o
desejo e o voo espantado das aves de grande porte que habitam os pauis do
silêncio. E é pelas mãos fora e pelos campos fora que caminhamos paralelos ao
rio, sempre paralelos ao rio, até ele se esgotar nas sensações que vêm
arrastando o corpo desde a nascente. E que o encaminham, agora vertiginosamente,
até à foz, onde as palavras soçobram entre as vagas da preia-mar.
Que silêncio habita, afinal, estes pauis?
Serão as palavras que, como as sementes, esperam melhores dias para germinar,
ou terá alguma ave de rapina escolhido os melhores significados para adornar o
seu ninho?
Mas este silêncio, sobretudo quando não
deixa falar os olhos, entristece tudo à sua volta. E só os mapas desenhados no
mais secreto das mãos parecem bastar para dar novo alento ao corpo, agora
peregrino e despojado de tudo, ora caminhando pelas ruas desertas da noite, ora
reclinando o cansaço entre as colinas amenas de um fim de tarde.
Uma cegonha-branca,
assustada com a nosso próprio silêncio, ensaia um voo baixo, para depois ganhar
altura e desaparecer para lá das sebes vivas que marginam estes campos de
água.
Augusto Mota, texto 101 de «A Geografia do Prazer», 2000
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