SEMEAR A LANÇO
Valeu a pena tanto labor e tanta espera,
sem desesperar. Foi mesmo ao anoitecer, quando as árvores e as recordações se
confundem, que descemos ao jardim, mas já só vimos vultos. Aspirámos, porém, o
aroma quente das flores da Magnolia soulangeana nigra e colhemos ainda
dois botões que em nossas mãos abriram o segredo de suas pétalas negras e uma
fragrância nova envolveu a noite e o cansaço da espera. Para alívio de tanto
mal esfregámos, uma a uma, todas as pétalas no rosto e nos olhos doridos, como
se tão caseira mezinha fosse a cura há muito ansiada. Tão bela recordação, pelo
menos, irá aliviar o sono e, hoje, já poderemos fechar as mãos e dormir
descansados sobre o segredo do perfume que envolveu todos os gestos.
Do perfume da esperança que um dia
semeámos num canteiro do jardim, debaixo da magnólia, esperamos, pelo menos, a
coragem para atravessar a aridez das
paisagens que ainda povoam as
rotas da noite e a madrugada de alguns dias.
Depois de amanhã repetiremos os gestos
largos e seguros de quem semeia de lanço sobre a terra lavrada de fresco e das
sementes, assim lançadas a esmo, hão-de
germinar novas intenções e frutos saborosos que colheremos na estação
própria. Talvez lá para o fim do Estio.
Augusto Mota, texto 55 de «A Geografia do Prazer», 1999
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