terça-feira, 2 de julho de 2013

A Geografia do Prazer



SEMEAR  A  LANÇO

Valeu a pena tanto labor e tanta espera, sem desesperar. Foi mesmo ao anoitecer, quando as árvores e as recordações se confundem, que descemos ao jardim, mas já só vimos vultos. Aspirámos, porém, o aroma quente das flores da Magnolia soulangeana nigra e colhemos ainda dois botões que em nossas mãos abriram o segredo de suas pétalas negras e uma fragrância nova envolveu a noite e o cansaço da espera. Para alívio de tanto mal esfregámos, uma a uma, todas as pétalas no rosto e nos olhos doridos, como se tão caseira mezinha fosse a cura há muito ansiada. Tão bela recordação, pelo menos, irá aliviar o sono e, hoje, já poderemos fechar as mãos e dormir descansados sobre o segredo do perfume que envolveu todos os gestos.

Do perfume da esperança que um dia semeámos num canteiro do jardim, debaixo da magnólia, esperamos, pelo menos, a coragem para atravessar a aridez das  paisagens que ainda  povoam as rotas da noite e a madrugada  de alguns dias.

Depois de amanhã repetiremos os gestos largos e seguros de quem semeia de lanço sobre a terra lavrada de fresco e das sementes, assim lançadas a esmo, hão-de  germinar novas intenções e frutos saborosos que colheremos na estação própria. Talvez lá para o fim do Estio. 

Augusto Mota, texto 55 de «A Geografia do Prazer», 1999

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