terça-feira, 2 de julho de 2013

A Geografia do Prazer


 AS  PRIMÍCIAS  DA  PRIMAVERA

Sente-se já a Primavera no coaxar das rãs pelas valas do paul e no canto nocturno dos rouxinóis pelos canaviais fora. Na hora do calor as borboletas fazem irrequietos voos de núpcias entre as árvores e as flores gritam, pelos campos fora, as cores que matizam a paisagem, como se estivessem a juntar tecidos variados para armar uma grandiosa manta de retalhos. É o artesanato da natureza a festejar a chegada da terra quente e do germinar das sementes nas terras lavradas de muitos tons de castanho e a cheirar ao húmus que enriquece as leivas e as leiras. 

Sente-se já uma outra Primavera que reflecte saudades pelas muitas viagens sonhadas, ou empreendidas pelos caminhos do olhar, ou pelas ruas estreitas que as mãos foram desenhando através da solidão e do sol nascente. Agora tudo fica mais difícil, mesmo viajar por entre as letras de cada palavra. As mãos estão doridas e os passos já não alcançam as distâncias que os olhos admiram. Tudo pesa mais, mesmo o viajar por entre o significado de cada palavra. Parece que o universo se reduziu ao momento real que nos ocupa e preocupa. Por isso a saudade de tanta viagem que fizemos, felizes, em  manhãs de Outono, por entre a música da vazante e o esvoaçar calmo das gaivotas. Era uma verdadeira Primavera o que os olhos sentiam. E as mãos, férteis, colhiam as primeiras flores que o acaso fazia desabrochar à beira dos caminhos e das pontes que a memória ia lançando para o futuro, ou para a Primavera dos dias que iam avançando para nós. 

Pressente-se ainda um calor estranho na palma das mãos e os dedos caminham lentos pelas teclas que fazem aparecer as palavras na paisagem das sensações. A custo arrastamos o corpo pelos abismos secretos do passado e aceitamos a redenção que a memória traz até nós para, com ela, viver o presente que vive de ânsia e de espera. 

Sente-se e pressente-se a espera nas primaveras que, ao anoitecer, se fecham para dormir sobre o seu próprio perfume, como que para guardar os segredos que a memória da noite poderia deixar escapar. De igual modo fechamos as mãos, ao anoitecer, para dormir sobre as recordações felizes de todas as Primaveras que cultivámos no jardim da esperança. 


Augusto Mota, texto 54 de «A Geografia do Prazer», 1999      

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