sexta-feira, 5 de julho de 2013

A Geografia do Prazer

 
A  DANÇA  DAS  HORAS

Debruçados sobre um horizonte de fim de tarde aguardamos as palavras que virão animar o silêncio e a espera. Por entre os fios que puxam o Sol para trás do palco onde dançam as horas do dia, vemos letras dispersas na paisagem que assiste ao espectáculo dos sentidos. E ouvimos o vento empurrar  tais letras lá de muito longe até nós para, assim, podermos juntá-las a nosso bel-prazer e saborear o significado das novas palavras que as mãos tacteiam em busca de um perfume secreto que acalme a dança das horas no palco das emoções.

À medida que o Sol se apaga para lá da cortina de fundo, as estrelas recolhem os fios ainda quentes de sustentarem o dia e convidam a Lua a entrar em cena. As horas exercitam novo bailado e descem  no palco os fios da noite. Da teia pendem os cabos que seguram as palavras justas para o espectáculo das horas que, como marionetas, dançam o nascer da Lua. E o perfume da noite traz o sono antes do sonho e tudo adormece na paisagem. Esta, cansada, inclina-se e as letras que sobraram da construção das palavras escorregam pela linha do horizonte abaixo e fogem, apressadas, para o território-das-coisas-que-esperam. Onde desesperam.


É difícil este bailado das horas num cenário de palavras escolhidas pelas mãos sobre as letras que caminham insistentemente para nós. À noite, sobretudo, quando a paisagem se reduz a um palco iluminado pelo luar das recordações e os actores agradecem, à boca de cena, os aplausos que nunca tiveram. As horas esgotam o tempo real e ficamos, apenas, com uma saudade imensa para viver o sonho que as palavras permitem, antes de as letras  deslizarem todas pela fronteira do horizonte abaixo, a caminho da  inutilidade e do desespero.

Na vida real somos actores de um outro destino onde não vemos os fios que movem os nossos passos e obrigam o nosso querer. Só no sonho educamos os gestos do corpo e saboreamos o perfume do tempo que não existe nas horas.


Augusto Mota, texto 57 de «A Geografia do Prazer», 1999
 

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