AUSÊNCIA
Estar ausente pode ser estar a saborear a
realidade e o sonho antes de arquivar, na memória dos desejos, as palavras e as
imagens que se vêem e se vivem, ao ritmo do acaso, pelos trilhos ignorados da
natureza, como se a aventura fosse um corpo vivo a acariciar o rosto do
dia.
Subimos a encosta íngreme da tarde por
entre uma chuva rala e grossa a espevitar os perfumes das plantas aromáticas
que encharcam a paisagem de lilás e amarelo. Os sentidos permanecem atentos. A
visão perde-se nos longínquos quilómetros a que fica um horizonte a nascente e
um outro, menos nítido, a poente, para lá do qual adivinhamos o mar através da
cerração. Seguimos pela crista da serra e dominamos o ambiente com os restantes
quatro sentidos, que apuramos mais à medida que interiorizamos tudo no corpo
desperto por uma paisagem telúrica, acentuada por grandes e pesadas nuvens
escuras. Um casal de corvos, bem negros, planando à cata de alimento ou de escarpa segura para
reprodução, anima o trilho de terra batida pelo nosso sonho e faz-nos entrar
nas metáforas do corpo liberto.
Pelos caminhos secretos da reserva
passeamos agora o sentido apurado do tacto e logo os dedos adivinham, de olhos
fechados, a inflorescência piramidal do satirião-menor, uma orquídea selvagem acabada de desabrochar, e o odor
refrescante da tomilhinha que atapeta o chão das palavras
e encoraja o gosto das coisas. O corpo
viaja, assim, pelos tentáculos dos sentidos e a boca parece sagrá-los a uma só voz. E estremece toda quando a diversidade botânica nos obriga
a contar alto os segundos que as mãos levam a travar o tempo para admirar o
espaço que a envolve e a recitar, em segredo, todos os nomes de todas as
plantas bolbosas que rasgam a terra atormentada pela invernia para exibirem,
orgulhosas, o fausto de suas
flores.
A
viagem progride. Os mapas da reserva situam-nos no espaço do tempo que temos
pela frente. A luz baixa da tarde atravessa o rendilhado macio das folhas
novas, que pintam as árvores de fresca esperança e deposita em nossas mãos a
dádiva de suas copas arredondadas, como que para confirmar o sentido renovador
da estação. O êxtase detém a jornada e sublima a eternidade, enquanto os olhos
anseiam pela descida até ao vale por onde correm todos os afluentes do rio e do
desejo.
Para excitar mais os olhos, uma
águia-de-asa-redonda levanta voo e desaparece, solitária,
por entre as escarpas do vale profundo que começamos a descer. Do outro lado,
em frente, as encostas estão decoradas por imensas construções geométricas
irregulares, formadas por chousos, ou muros de pedra solta, que mãos sábias e
pacientes foram amontoando, durante gerações, ao despedrar os baldios a conquistar
para amanho, ou para cercas onde o gado pudesse pastar em segurança. O dorso da
serra exibe agora, à luz coada do sol poente, uma cascata de muros de pedra
ensossa, em mei-lua, que garantem o crescimento das oliveiras nas vertentes íngremes, fazendo lembrar enormes escamas de algum monstro
pré-histórico que por ali tenha adormecido em paz.
Chegados ao fundo do vale, depois de tanto
peregrinar pelos caminhos sinuosos e silenciosos da serra, descansamos os olhos
e o corpo no retiro mais íntimo da noite, onde, finalmente, deixamos adormecer
os sonhos e a ausência.
Augusto Mota, texto 58 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
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