sexta-feira, 5 de julho de 2013

A Geografia do Prazer


AUSÊNCIA

Estar ausente pode ser estar a saborear a realidade e o sonho antes de arquivar, na memória dos desejos, as palavras e as imagens que se vêem e se vivem, ao ritmo do acaso, pelos trilhos ignorados da natureza, como se a aventura fosse um corpo vivo a acariciar o rosto do dia. 

Subimos a encosta íngreme da tarde por entre uma chuva rala e grossa a espevitar os perfumes das plantas aromáticas que encharcam a paisagem de lilás e amarelo. Os sentidos permanecem atentos. A visão perde-se nos longínquos quilómetros a que fica um horizonte a nascente e um outro, menos nítido, a poente, para lá do qual adivinhamos o mar através da cerração. Seguimos pela crista da serra e dominamos o ambiente com os restantes quatro sentidos, que apuramos mais à medida que interiorizamos tudo no corpo desperto por uma paisagem telúrica, acentuada por grandes e pesadas nuvens escuras. Um casal de corvos, bem negros, planando  à cata de alimento ou de escarpa segura para reprodução, anima o trilho de terra batida pelo nosso sonho e faz-nos entrar nas metáforas do corpo liberto.

Pelos caminhos secretos da reserva passeamos agora o sentido apurado do tacto e logo os dedos adivinham, de olhos fechados, a inflorescência piramidal do satirião-menor, uma orquídea selvagem acabada de desabrochar, e o odor refrescante da tomilhinha que atapeta o chão das palavras e encoraja o gosto das coisas. O corpo  viaja, assim,  pelos  tentáculos dos sentidos e a boca parece sagrá-los a uma só voz. E estremece  toda quando a diversidade botânica nos obriga a contar alto os segundos que as mãos levam a travar o tempo para admirar o espaço que a envolve e a recitar, em segredo, todos os nomes de todas as plantas bolbosas que rasgam a terra atormentada pela invernia para exibirem, orgulhosas, o fausto de suas  flores. 

 A viagem progride. Os mapas da reserva situam-nos no espaço do tempo que temos pela frente. A luz baixa da tarde atravessa o rendilhado macio das folhas novas, que pintam as árvores de fresca esperança e deposita em nossas mãos a dádiva de suas copas arredondadas, como que para confirmar o sentido renovador da estação. O êxtase detém a jornada e sublima a eternidade, enquanto os olhos anseiam pela descida até ao vale por onde correm todos os afluentes do rio e do desejo.

Para excitar mais os olhos, uma águia-de-asa-redonda levanta voo e desaparece, solitária, por entre as escarpas do vale profundo que começamos a descer. Do outro lado, em frente, as encostas estão decoradas por imensas construções geométricas irregulares, formadas por chousos, ou muros de pedra solta, que mãos sábias e pacientes foram amontoando, durante gerações, ao despedrar os baldios a conquistar para amanho, ou para cercas onde o gado pudesse pastar em segurança. O dorso da serra exibe agora, à luz coada do sol poente, uma cascata de muros de pedra ensossa, em mei-lua, que garantem o crescimento das oliveiras nas vertentes íngremes, fazendo lembrar enormes escamas de algum monstro pré-histórico que por ali tenha adormecido em paz.

Chegados ao fundo do vale, depois de tanto peregrinar pelos caminhos sinuosos e silenciosos da serra, descansamos os olhos e o corpo no retiro mais íntimo da noite, onde, finalmente, deixamos adormecer os sonhos e a ausência.


Augusto Mota, texto 58 de «A Geografia do Prazer», 1999

- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.

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