terça-feira, 2 de julho de 2013

A Geografia do Prazer


O  GESTO  DO  SEMEADOR

O depois de amanhã foi hoje, enquanto três flores de camélia nadaram, orgulhosas, no aquário que enfeitou a refeição da noite e a viagem através dos campos lavrados da madrugada. Neles fomos semeando, a lanço, as promessas da antevéspera. E o cheiro forte à terra húmida das leivas parecia encorajar mais o gesto do semeador. As pegadas que iam marcando o percurso do gesto sobre a terra lavrada em breve desapareceram sob o peso da grade que, de seguida, alisou o terreno e afundou as sementes no solo fértil e macio.

O depois de amanhã foi, também, o sabor da comida e das palavras que refrescaram a noite e o silêncio. Silêncio que parecia deixar-nos ouvir a lenta germinação das sementes e dos gestos. Sobre estes adormecemos o sonho e o corpo cansado, como se uma sesta, mesmo fora de horas, fosse o melhor lenitivo para tamanha labuta.

Depois, à sombra da noite, escrevemos, sem palavras, o registo das intenções que o olhar foi deixando no corpo da paisagem.

E, à sombra do sonho, desenhámos, sem traços, a árvore azul que iluminou, com seus frutos claros, a terra amanhada de véspera.

Augusto Mota, texto 56 de «A Geografia do Prazer», 1999

- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória. 

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