UVAS-DO-MONTE
O Sol, como um bolo, parte-se e
reparte-se pelos convivas de um doméstico festim de palavras. A quem daremos a
melhor parte? Às mãos, por certo, pois são elas que partem e repartem a exacta
porção de luz dourada que inunda os olhos, enquanto o ló, como fina espuma dos
dias, escorre por entre os dedos e invade os braços, a caminho de todas as
memórias do corpo.
Secreta vigilância esta que domina os
dias, como quem espera pelo desespero! Que outras palavras avançaremos para
delimitar a razão de tão parco existir?
As palavras, como os bolos, estão
recheadas de memórias e de sabores que usamos a esmo nestas receitas culinárias
muito pessoais, pois não respeitamos nem pesos, nem medidas. Tudo é muito bem
batido em tacho de cobre, com colher de madeira, para depois ir ao forno, de
onde, por vezes, sai ainda bem quente para servir, de imediato, como sobremesa
no banquete das palavras. Estas, mergulhadas na infância dos dias que passámos
a esquecê-las, impõem-se-nos como uma gulosa fatia de pão-de-ló recheado de
mirtilos e, assim, é difícil não as usar em nosso
próprio proveito.
Elas, as palavras, percorrem a nossa
paisagem interior de norte a sul, de leste a oeste, para contentamento dos
pontos cardeais da nossa imaginação, que navega sempre à bolina, até ancorar
numa baía de águas claras e baixas onde possamos refrescar as mãos e os olhos.
E só depois, satisfeitos e mais rejuvenescidos, poderemos voltar a adormecer
sobre as gratas recordações desta doce culinária do sentido íntimo das
palavras.
As palavras escritas são, a certas horas, o único alimento para as mãos
que gostariam bem mais de estar a saborear o apelo irrecusável de um punhado de
violáceas e sumarentas uvas-do-monte, ou mirtilos.
Augusto Mota, texto 84 de «A Gegrafia do Prazer», 1999
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