SAXOFÍNIA
Os sons de um saxofone são quentes e
dolentes como as noites de Verão nos subúrbios das grandes cidades, num filme a
preto e branco. Mesmo que ouçamos Haendel, Bach ou Piazzola, são as escadas exteriores de ferro dos bairros degradados que ilustram os lamentos,
os gritos e os ritos que nos chegam de um submundo encarcerado em territórios
escurecidos pelas violentas batalhas da sobrevivência.
Sobrevive-se, assim, pelos sons que,
também eles, lutam contra a tristeza que ainda não chegou às mãos, nem à boca
que se alimenta, vaidosa, do diálogo que os ritmos vários vão alongando pelas
ruas da noite, até chegarem ao rio, onde se refrescam à superfície de todas as
marés, quando elas começam a esconder o
lodo das docas e a tocar diferentes melodias no casco ferrugento de algum navio
prestes a zarpar.
São longas as viagens que fazemos ao som
de um quarteto de saxofones: é como se
embarcássemos, clandestinamente, num velho cargueiro, com bandeira de
conveniência, a caminho dos mares do sul, onde o bom agoiro de um albatroz nos acompanha sempre até a uma ilha perdida entre a memória e
o presente. É uma ilha sem subúrbios de grandes cidades, nem lodo no cais da
esperança, mas onde é possível ouvir, no calor das noites tropicais, Indiana
Tones, de Eurico Carrapatoso, ou Sud-America, de Lino
Florenzo.
Hoje a música das palavras é outra e
dilui-se na aventura dos tons e dos sons a preto e branco, em fuga permanente
pelas escadas de serviço dos prédios onde habitam as mãos e o calor da
noite.
Augusto Mota, texto 85 de «A Geografia do Prazer», 1999
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