sábado, 11 de janeiro de 2014

A Geografia do Prazer



SAXOFÍNIA

Os sons de um saxofone são quentes e dolentes como as noites de Verão nos subúrbios das grandes cidades, num filme a preto e branco. Mesmo que ouçamos Haendel, Bach ou Piazzola,  são as escadas exteriores de ferro dos  bairros degradados que ilustram os lamentos, os gritos e os ritos que nos chegam de um submundo encarcerado em territórios escurecidos pelas violentas batalhas da sobrevivência.

Sobrevive-se, assim, pelos sons que, também eles, lutam contra a tristeza que ainda não chegou às mãos, nem à boca que se alimenta, vaidosa, do diálogo que os ritmos vários vão alongando pelas ruas da noite, até chegarem ao rio, onde se refrescam à superfície de todas as marés, quando elas começam  a esconder o lodo das docas e a tocar diferentes melodias no casco ferrugento de algum navio prestes a zarpar.

São longas as viagens que fazemos ao som de um quarteto de saxofones: é  como se embarcássemos, clandestinamente, num velho cargueiro, com bandeira de conveniência, a caminho dos mares do sul, onde o bom agoiro de um albatroz nos acompanha sempre até a uma ilha perdida entre a memória e o presente. É uma ilha sem subúrbios de grandes cidades, nem lodo no cais da esperança, mas onde é possível ouvir, no calor das noites tropicais, Indiana Tones, de Eurico Carrapatoso, ou Sud-America, de Lino Florenzo.

Hoje a música das palavras é outra e dilui-se na aventura dos tons e dos sons a preto e branco, em fuga permanente pelas escadas de serviço dos prédios onde habitam as mãos e o calor da noite. 


Augusto Mota, texto 85 de «A Geografia do Prazer», 1999

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