ESTÁTICO ÊXTASE
Saborear o perfume de uma
líchia é como deixar as mãos navegar à sombra das
pétalas de todas as rosas que já enfeitaram a esperança dos dias, quando as
estações do ano se contavam pela germinação das sementes e pelos frutos que,
ansiosamente, guardávamos nos olhos. Mas descascar minuciosamente a casca
coriácea de uma líchia, sem ferir a sua polpa sumarenta, é como abandonar a
boca ao prazer de todos os frutos exóticos que se escondem, ávidos, atrás das
finas roupagens da memória.
A noite é pródiga em tal caminhar pelos
saborosos segredos da botânica, mesmo quando a azáfama dos dias nos afasta do
mercado de todas as secretas e sensatas sensações. Assim penamos, extáticos,
entre as gratas recordações das mãos e o sabor daquela memória que guardamos
tão ciosamente como se fosse a secreta receita de um sofisticado licor. Por
isso a boca antecipa o que os olhos, gulosos, já não conseguem disfarçar ao ver
chegar de longe, pé ante pé, os sábios requintes da madrugada. Neles
descansamos o corpo exausto. Neles adivinhamos a repetição dos dias. E neles
semeamos, a esmo, erva-cabecinha, ou perpétua-das-areias, para que as suas flores animem, com um aroma de culinária
exótica, o que ainda resta do sabor das tardes quentes, ou para, com elas bem
secas, enchermos as almofadas que nos amparam o sono dorido e os sonhos
vigilantes.
É estático este êxtase que adormece o
silêncio e a noite, como se a Glória de uma missa-cantilena acabasse, agora mesmo,
de percorrer a nave de uma catedral gótica
e deixasse as mãos perdidas ante a imponência das colunas e a hesitação
dos olhos que, temerosos, vagueiam pelo transepto em busca do infinito de nós.
Augusto Mota, texto 86 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória
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