sábado, 11 de janeiro de 2014

A Geografia do Prazer


ESTÁTICO ÊXTASE


Saborear o perfume de uma líchia é como deixar as mãos navegar à sombra das pétalas de todas as rosas que já enfeitaram a esperança dos dias, quando as estações do ano se contavam pela germinação das sementes e pelos frutos que, ansiosamente, guardávamos nos olhos. Mas descascar minuciosamente a casca coriácea de uma líchia, sem ferir a sua polpa sumarenta, é como abandonar a boca ao prazer de todos os frutos exóticos que se escondem, ávidos, atrás das finas roupagens da memória.

A noite é pródiga em tal caminhar pelos saborosos segredos da botânica, mesmo quando a azáfama dos dias nos afasta do mercado de todas as secretas e sensatas sensações. Assim penamos, extáticos, entre as gratas recordações das mãos e o sabor daquela memória que guardamos tão ciosamente como se fosse a secreta receita de um sofisticado licor. Por isso a boca antecipa o que os olhos, gulosos, já não conseguem disfarçar ao ver chegar de longe, pé ante pé, os sábios requintes da madrugada. Neles descansamos o corpo exausto. Neles adivinhamos a repetição dos dias. E neles semeamos, a esmo, erva-cabecinha, ou perpétua-das-areias, para que as suas flores animem, com um aroma de culinária exótica, o que ainda resta do sabor das tardes quentes, ou para, com elas bem secas, enchermos as almofadas que nos amparam o sono dorido e os sonhos vigilantes.

É estático este êxtase que adormece o silêncio e a noite, como se a Glória  de uma missa-cantilena acabasse, agora mesmo, de percorrer a nave de uma catedral gótica  e deixasse as mãos perdidas ante a imponência das colunas e a hesitação dos olhos que, temerosos,  vagueiam  pelo transepto em busca do infinito de nós.


Augusto Mota, texto 86 de «A Geografia do Prazer», 1999 

- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória

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