A caminho do Outono, apressadas, correm as
árvores pela paisagem fora. Já são de ouro as cores das folhas que se espalham
pelas mãos, à beira de todos os caminhos do corpo, quando o vento anuncia chuva
e refresca os olhos cansados de tanta viagem pelo deserto das emoções.
Vamos, em breve, iniciar um outro ciclo de
encontros desencontrados, como se o Outono tivesse que ser a estação de partida
e de chegada de todas as viagens empreendidas ao sabor da memória e dos dias
que a justificam.
Vamos, por certo, atravessar os extensos
campos de arroz quando os homens e as máquinas já se
preparam para a ceifa das espigas maduras e alguns bandos de garças boieiras ensaiam voos de migração rumo ao sul, rumo à Primavera de todas as
aves.
Vamos, ainda, deixar os olhos recordar o
verde do vale quando a luz rasante da manhã enobrecia os tons vários dos
arrozais, ou quando as cores do poente pareciam antecipar-lhes a maturação. E o
Mondego, de permeio, sempre a dividir a jornada entre a ida e a volta, como se
ter que atravessar uma ponte fosse a mais correcta desculpa para tudo o que os
olhos desejam: habitar, por exemplo, as ruas e os largos daquela aldeia do
poeta Afonso Duarte, que a memória ainda vê rodeada de água por todos os lados,
qual ilha perdida na
bruma dos campos
alagados pelas águas
férteis de um Inverno que o rio deixou sair de suas
margens. De longe, através das janelas
de uma velha carruagem de
terceira classe, vemos ainda, nítidas, as casas reflectidas no vasto espelho da
manhã, só quebrado aqui e ali pelos ramos angustiados das árvores que tentam
sobreviver a tal tormento, enquanto o comboio se afasta, ronceiro, contornando
os campos semeados de água e desespero.
Vamos, pois, ter esperança nas viagens que
havemos de fazer pelas cores adentro que as árvores, propositadamente, foram
abandonando em nossas mãos. E não deixaremos que tal esperança desapareça nas
águas quando elas baixarem e quase só alimentarem as valas de enxugo que vão
riscar a paisagem como esteiras de luz, anunciando, assim, o fim de todos os
invernos. Começam, então, os primeiros amanhos dos campos, com os animais e as
máquinas a lavrarem a terra e a água onde crescerão as espigas que iluminam o
nosso contentamento de hoje.
Vamos, sobretudo, fazer o elogio da
lavoura que permite ao corpo o sustento das mãos, espalhando, como adubo
natural, as boas recordações de ontem sobre todos os campos agora já arados,
para que as espigas cresçam mais depressa e o grão seja mais suculento.
Assim, a boca agradecerá a festa e o esforço.
Augusto Mota, texto 87 de «A Geografia do Prazer», 1999
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