A ESTAÇÃO FÉRTIL
Fértil é a estação do ano onde proliferam
as angústias que, como folhas de árvore amarelecidas pelo tempo, descem,
suavemente, em nossas mãos outonais. Também elas - as mãos - vão deixando cair
no esquecimento as memórias dos dias que ainda não antecipavam nada para além
do que, sofridamente, iam desenhando no horizonte áspero e branco do
papel. Também elas, silenciosamente, nos
arrastavam - e arrastam - até esse horizonte onde a espera é sempre igual
ao cansaço das noites passadas entre viagens e vertigens, entre fendas e fugas,
sobre precipícios perdidos à beira de caminhos sem pontes visíveis entre as
margens do delírio e as da imaginação fértil. Assim ficámos - e ficamos -,
permanentemente, à ilharga da madrugada, sem nos atrevermos a escalar outras
dificuldades para além das que os olhos pressentiam - e pressentem - e
as mãos conseguiam - e conseguem - dominar.
Fértil é a noite onde proliferam as sendas
sinuosas dos desencontros que, como rios de fogo, avançam pelas vertentes
áridas da angústia a caminho das várzeas verdes da esperança. Mas que esperança
podemos esperar depois de todas as colheitas terem desaparecido debaixo da lava
incandescente de tanta espera?!
É pelo sossego da noite, antes de as mãos,
cansadas, adormecerem encostadas ao brilho sôfrego dos olhos, que empreendemos
as grandes viagens por entre os espaços vazios
da música e do silêncio. Seguimos a magia das palavras que nos vão acordando
os passos incertos e os significados menos esperados, sempre a caminho da
memória das cores e das coisas. E dos cheiros que, por vezes, arrastam consigo
o saber e sabor do passado.
Fértil é a viagem por entre os silêncios
da música, quando tudo parece ir acabar em breve e sentimos a pressa das mãos
por cima das letras que vão escrevendo as palavras que, inesperadamente, vêm ao
nosso encontro. Mas nem sempre elas conseguem evocar todas as imagens que vivem
agarradas à memória dos aromas vários de uma merenda de trabalhadores por entre
paveias de pasto acabado de cortar, ou agarradas à memória do cheiro ácido e
quente da terra abençoada pela bico de uma charrua, enquanto as leivas
deslizavam pelo aço luzidio da folha, pondo a descoberto os pequenos bolbos da
erva-canária, ou trevo-azedo, que, à noite, antes da
ceia, torrávamos na lareira da infância, junto ao brasido. Por isso
desesperamos. Por isso viajamos, constantemente, entre o ontem e o futuro que
as palavras antecipam a cada esquina dos seus e dos nossos próprios sentidos.
Férteis são todos os sentidos do corpo e
das palavras. Por isso, só ficamos apaziguados quando as mãos conseguem
desenhar, letra a letra, as imagens vivas que arrastam os olhos e a memória
pelos íngremes atalhos do corpo, onde já se pressentem as vertigens de
uma viagem, sem retorno, ao centro da própria noite.
Augusto Mota, texto 89 de «A Geografia do Prazer», 1999
- exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
Sem comentários:
Enviar um comentário