sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

A Geografia do Prazer




RECEITA
 
Quando, manhã cedo, o sol de Outono realça as formas e aviva as cores dos frutos que pendem, vaidosos, da copa nua de um diospireiro os olhos enchem-se de sabores apetecidos. Mas é às mãos que damos a honra de provar os tons vários de todos os prazeres que, ciosos, se escondem para além da polpa ávida e sumarenta de cada dióspiro.

Que universo de sensações habitam tal fruto quando colhido, com delicadeza, no próprio corpo da árvore!

Quando os ramos já perderam todas as suas folhas escolhe-se um, bem maduro, quase sorvado, sopesa-se, deixando que a sua casca fina e lisa adira completamente à nossa mão e aos dedos, de modo a sentirmos o pulsar de sua polpa deliciosamente doce. Depois, quando o fruto já faz parte do nosso corpo, ele próprio se solta da árvore e inunda-nos os olhos de cores e formas variadas: uns são amarelos, outros alaranjados ou roxos; uns são achatados, outros cónicos ou pontiagudos. Preferimos os que enchem bem a mão e têm a cor laranja de um sereno pôr-do-sol de Inverno sobre o mar, daqueles que  costumam anunciar as fortes geadas de Janeiro. Talvez por isso o doce destas bagas enormes tenha um sabor tão frio, parecendo negar o calor da sua sensual aparência.

E a boca? A boca, aguada, fica-se pela aventura da imaginação a caminho de todos os desejos. Vive, sôfrega, entre o que vê e o que sente. E, por vezes, sente mais do que deseja. Por isso a deixamos calada, enquanto as mãos caminham, impacientes, pelos frutos dentro, rumo ao horizonte dos olhos.

Aí descansamos o cansaço da manhã no regaço da colheita.


Augusto Mota, texto 88 de «A Geografia do Prazer», 1999
 

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