RECEITA
Quando, manhã cedo, o sol de Outono realça
as formas e aviva as cores dos frutos que pendem, vaidosos, da copa nua de um
diospireiro os olhos enchem-se de sabores apetecidos.
Mas é às mãos que damos a honra de provar os tons vários de todos os prazeres
que, ciosos, se escondem para além da polpa ávida e sumarenta de cada dióspiro.
Que universo de sensações habitam tal
fruto quando colhido, com delicadeza, no próprio corpo da árvore!
Quando os ramos já perderam todas as suas
folhas escolhe-se um, bem maduro, quase sorvado, sopesa-se, deixando que a sua
casca fina e lisa adira completamente à nossa mão e aos dedos, de modo a
sentirmos o pulsar de sua polpa deliciosamente doce. Depois, quando o fruto já
faz parte do nosso corpo, ele próprio se solta da árvore e inunda-nos os olhos
de cores e formas variadas: uns são amarelos, outros alaranjados ou roxos; uns
são achatados, outros cónicos ou pontiagudos. Preferimos os que enchem bem a
mão e têm a cor laranja de um sereno pôr-do-sol de Inverno sobre o mar,
daqueles que costumam anunciar as fortes
geadas de Janeiro. Talvez por isso o doce destas bagas enormes tenha um sabor
tão frio, parecendo negar o calor da sua sensual aparência.
E a boca? A boca, aguada, fica-se pela
aventura da imaginação a caminho de todos os desejos. Vive, sôfrega, entre o
que vê e o que sente. E, por vezes, sente mais do que deseja. Por isso a
deixamos calada, enquanto as mãos caminham, impacientes, pelos frutos dentro,
rumo ao horizonte dos olhos.
Aí descansamos o cansaço da manhã no
regaço da colheita.
Augusto Mota, texto 88 de «A Geografia do Prazer», 1999
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