A NAU DOS CORVOS
O farol na ponta do cabo adensa o mistério
que fica para além do horizonte cerrado
e, em breve, uma chuva
grossa, tocada a vento, impede a
viagem pelos miradouros do sonho. Não é noite,
mas gostaríamos que os olhos corressem por uns secretos rastos de luz a caminho
das ilhas que ficam a estibordo da nau que navega o mar de todas as sensações.
Não há corvos, mas gostaríamos que o seu grasnar anunciasse o fim de todas as
tempestades, como se a barca em que vogamos fosse a redenção para as lágrimas
de todos os queixumes. Ouvem-se, apenas, os gritos das gaivotas contra o vento
forte que as faz planar sobre as rochas marcadas pelo tempo e pelas vagas.
Mesmo assim continuamos a viagem a caminho de um novo regresso.
Regressa-se sempre pelos caminhos apressados que as mãos vão
talhando e atalhando nas paisagens marítimas do nosso
olhar. Mesmo em dias cinzentos sabemos esculpir as nuvens para que o Sol
festeje o verde que corre pelos campos fora até às arribas que os protegem da
maré-cheia. E o amarelo que pontilha montes e vales é o que resta da sagração
do mar e da Primavera da terra. São
secretos rastos de luz a caminho das ilhas que ficam a bombordo das sensações
que povoam o mar de todas as naus. E é nelas que poisam os corvos-marinhos dos bons e dos maus presságios. E é nelas que, no silêncio da
espera, aportamos, peregrinos, em terras distantes e tristes. E é nelas que, no
silêncio do desejo, transportamos as árvores que plantamos à beira do sonho, ou
arrecadamos os frutos silvestres que alimentam a viagem. Levamos, por vezes,
abrunhos bravos, colhidos em manhãs orvalhadas, para matar a sede e a saudade.
Que terras distantes são estas que ficam
para além dos gestos e do olhar? Difíceis viagens esperam o corpo nas rotas de
tamanha empresa!
Se a sede se mata com o orvalho dos frutos
selvagens, já a saudade se alimenta das árvores que abrolham, perpetuamente, à
ilharga das ilusões.
Augusto Mota, texto 62 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
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