sábado, 10 de agosto de 2013

A Geografia do Prazer


A NAU DOS CORVOS

O farol na ponta do cabo adensa o mistério que fica para além do horizonte cerrado  e, em breve,  uma  chuva  grossa, tocada a vento, impede a viagem pelos miradouros do sonho. Não é noite, mas gostaríamos que os olhos corressem por uns secretos rastos de luz a caminho das ilhas que ficam a estibordo da nau que navega o mar de todas as sensações. Não há corvos, mas gostaríamos que o seu grasnar anunciasse o fim de todas as tempestades, como se a barca em que vogamos fosse a redenção para as lágrimas de todos os queixumes. Ouvem-se, apenas, os gritos das gaivotas contra o vento forte que as faz planar sobre as rochas marcadas pelo tempo e pelas vagas. Mesmo assim continuamos a viagem a caminho de um novo regresso.

Regressa-se sempre  pelos caminhos apressados que as mãos vão talhando e atalhando nas paisagens marítimas do nosso olhar. Mesmo em dias cinzentos sabemos esculpir as nuvens para que o Sol festeje o verde que corre pelos campos fora até às arribas que os protegem da maré-cheia. E o amarelo que pontilha montes e vales é o que resta da sagração do mar e da  Primavera da terra. São secretos rastos de luz a caminho das ilhas que ficam a bombordo das sensações que povoam o mar de todas as naus. E é nelas que poisam os corvos-marinhos dos bons e dos maus presságios. E é nelas que, no silêncio da espera, aportamos, peregrinos, em terras distantes e tristes. E é nelas que, no silêncio do desejo, transportamos as árvores que plantamos à beira do sonho, ou arrecadamos os frutos silvestres que alimentam a viagem. Levamos, por vezes, abrunhos bravos, colhidos em manhãs orvalhadas, para matar a sede e a saudade.

Que terras distantes são estas que ficam para além dos gestos e do olhar? Difíceis viagens esperam o corpo nas rotas de tamanha empresa!

Se a sede se mata com o orvalho dos frutos selvagens, já a saudade se alimenta das árvores que abrolham, perpetuamente, à ilharga das ilusões. 


Augusto Mota, texto 62 de «A Geografia do Prazer», 1999  

- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.

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