NOITE OPERÁTICA
De noite se constroem cidades. De noite se
voa sobre as cidades que vivemos e imaginamos, enquanto os olhos correm sobre
uma paisagem de milhares de pontos luminosos a debruar os caminhos das trevas.
Tantas luzes vistas do cimo do Monte, a brilhar lá em baixo e ao longe,
transformam a noite numa imensa basílica onde os peregrinos somos nós que
pagamos a promessa de viajar eternamente entre as mãos e a madrugada. As
orações são os novos sentidos do corpo e o oficiante é o desejo que, humilde,
celebra o renovar de todas as caminhadas.
Atravessamos o território da noite
enquanto milhares de velas cintilam no vasto recinto do santuário ou se espalham, atentas,
pela escadaria sagrada. São figurantes que aguardam, extáticos, que alguém
escreva o libreto de uma monumental ópera cujos ensaios vão decorrendo ao longo
dos ofícios nocturnos. Antecipamos, só
para nós, a chegada da carruagem divina, puxada por oito corcéis brancos, com estrelas azuis a decorar
os finos arreios de ouro e prata. Vindo de longe, do meio das nuvens e da lua
cheia, um carro alegórico atravessa a colunata e estaca mesmo em frente da
multidão ansiosa. Um coro entoa salmos que elogiam os anjos e os tronos de onde
eles zelam pela sombra de nossos passos. Abrem-se as portas da carruagem e a
rainha da noite, de largas vestes azuis e brancas, desce suavemente, por entre
harpas e trombetas, amparando uma
lua no regaço e erguendo um sol na mão direita. Caminha, agora, sobre um
tapete de incenso e de ervas aromáticas, até se diluir por entre as luminárias
que redobram os seus lampejos para, de súbito, tudo se apagar da memória, tudo
ficar uma noite escura vista do cimo do Monte, com luzes reais a brilhar lá em
baixo e ao longe.
Descemos da noite e do Monte pelas
estradas íngremes da emoção, a caminho da nascente de um rio claro que
atravessa as mãos e desagua na infância do olhar, todos os dias ao
pôr do sol.
Augusto Mota, texto 70 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
Sem comentários:
Enviar um comentário