segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A Geografia do Prazer



A  ARTE  TOPIÁRIA

Os cães descansam a meus pés. Acompanharam-me durante toda a tarde pelos caminhos da solidão e do trabalho manual. Ajudaram-me na monda das ervas daninhas e na arte topiária, que sempre reservo para os fins de tarde quando o sol dá de través nos volumes da Escallonia macrantha e realça, para as mãos e para os olhos, as formas todas que vamos talhando a caminho do desejo e do sonho. Gosto, sobretudo, da sensualidade destes volumes verdes, salpicados de pequenas flores rosa-escuro, intercalados com a explosão álacre do amarelo da Forsythia intermedia. É neste contraste de cores quentes e frias que buscamos o alento para a  grande travessia das mãos rumo ao sol-posto. É que, depois de cair a noite, já não há formas para criar e recriar ao som da música de Bach que enche, agora, todo o espaço entre as palavras aparadas ao ritmo dos sons. Sons que vêm de baixo, de cima, dos lados, como se só estes acordes pudessem ser o alimento para o corpo que voa a caminho do nada, sobre um rio que escorre para norte do território onde, ontem, quisemos plantar o nosso jardim.

Amanhã iremos à praia e passearemos estes animais de estimação ao longo do areal na baixa-mar. Iremos, também, até à foz ouvir, na melodia da água que se despede do rio, os últimos acordes da ‘Suite Orquestral nº4’ de Bach, que terminou agora mesmo. Com o Husky e o Nikki vigiaremos a subida da maré da nossa sorte. Talvez o fim da tarde seja mais propício a darem à costa sensações que venham de longe, do mar alto, para arribarem ao porto seguro das nossas mãos. Já vejo os cães, excitados, a pressentirem a aproximação de um veleiro carregado de verdura talhada ao gosto das emoções que hoje adiámos. É nele que havemos de regressar todos pelo rio acima e aproveitaremos as águas turvas das últimas chuvadas para pescar enguias à sertela. Serão o nosso alimento enquanto durar a viagem até à fonte onde nasce o rio e o sonho. Mas fritas e acompanhadas de pão quente e bem cozido. Pelo caminho havemos, ainda, de plantar flores várias em ambas as margens para iluminarem as rotas da noite, quando os olhos não conseguirem esperar pela madrugada e o corpo quiser repetir os prazeres da memória. 

Os cães continuam a descansar a meus pés. Nem o barulho do aparar das palavras com a tesoura de jardineiro os consegue acordar. 

As palavras, também cansadas, regressam ao viveiro onde cresceram a nosso gosto.


Augusto Mota, texto 66 de «A Geografia do Prazer», 1999




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