A ARTE TOPIÁRIA
Os cães descansam a meus pés.
Acompanharam-me durante toda a tarde pelos caminhos da solidão e do trabalho
manual. Ajudaram-me na monda das ervas daninhas e na arte topiária, que sempre
reservo para os fins de tarde quando o sol dá de través nos volumes da Escallonia
macrantha e realça, para as mãos e para os olhos, as formas todas que vamos
talhando a caminho do desejo e do sonho. Gosto, sobretudo, da sensualidade
destes volumes verdes, salpicados de pequenas flores rosa-escuro, intercalados
com a explosão álacre do amarelo da Forsythia intermedia. É neste
contraste de cores quentes e frias que buscamos o alento para a grande travessia das mãos rumo ao sol-posto.
É que, depois de cair a noite, já não há formas para criar e recriar ao som da
música de Bach que enche, agora, todo o espaço entre as palavras aparadas ao
ritmo dos sons. Sons que vêm de baixo, de cima, dos lados, como se só estes
acordes pudessem ser o alimento para o corpo que voa a caminho do nada, sobre
um rio que escorre para norte do território onde, ontem, quisemos plantar o
nosso jardim.
Amanhã iremos à praia e passearemos estes
animais de estimação ao longo do areal na baixa-mar. Iremos, também, até à foz ouvir, na
melodia da água que se despede do rio, os últimos acordes da ‘Suite Orquestral
nº4’ de Bach, que terminou agora mesmo. Com o Husky e o Nikki
vigiaremos a subida da maré da nossa sorte. Talvez o fim da tarde seja mais
propício a darem à costa sensações que venham de longe, do mar alto, para
arribarem ao porto seguro das nossas mãos. Já vejo os cães, excitados, a
pressentirem a aproximação de um veleiro carregado de verdura talhada ao gosto
das emoções que hoje adiámos. É nele que havemos de regressar todos pelo rio
acima e aproveitaremos as águas turvas das últimas chuvadas para pescar enguias à sertela. Serão o nosso alimento enquanto durar a
viagem até à fonte onde nasce o rio e o sonho. Mas fritas e acompanhadas de pão
quente e bem cozido. Pelo caminho havemos, ainda, de plantar flores várias em
ambas as margens para iluminarem as rotas da noite, quando os olhos não
conseguirem esperar pela madrugada e o corpo quiser repetir os prazeres da
memória.
Os cães continuam a descansar a meus pés.
Nem o barulho do aparar das palavras com a tesoura de jardineiro os consegue
acordar.
As palavras, também cansadas, regressam ao
viveiro onde cresceram a nosso gosto.
Augusto Mota, texto 66 de «A Geografia do Prazer», 1999
Sem comentários:
Enviar um comentário