sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A Geografia do Prazer



DIA  DE  MERCADO


Hoje era dia de mercado na cidade. Vendia-se e comprava-se roupa. Vendia-se e comprava-se fruta. Mas dava-se alegria. A alegria que as mãos sentiram ao percorrer os caminhos sinuosos e sombreados por entre as tendas do mercado de levante. O calor era muito e tivemos que repousar   quando o sol parecia querer atrasar os passos em direcção à tenda onde se expunham imagens de sonho e de mar. Soubemos, deste modo, antecipar o que os olhos percorreram no corpo dos frutos pintados na maré-cheia das emoções e das tintas e das telas, quando o mar conseguiu trazer até nós o sabor e a cor das enormes maçãs, à sombra das quais passeámos as mãos pelas sensações dentro. Se numa das telas alguém dormia à beira-mar, encostado ao fruto do desejo, esse alguém era, por certo, uma imagem antecipada do futuro recobrando forças para caminhar ao lado do presente.


Como num espelho de duas faces, presente e futuro confundem-se nas voltas sinuosas do olhar que se espraia por horizontes longínquos, contrariando as mais elementares leis da perspectiva. Contrariando, até, as leis da gravidade, ao imaginar alguém fugindo do presente e remando afincadamente, num mar de nuvens encapeladas, em direcção ao futuro. Que presente é este, então, de onde fugimos ao sabor das vagas que assolam o corpo e arrastam as mãos para lá das imagens reflectidas num espelho já embaciado pela maresia, ou pela transpiração ofegante das mãos? Se a tinta das maçãs, que vimos a deslizar pelo glaciar abaixo, ainda estivesse fresca, teríamos aberto nelas uma porta de acesso ao outro lado do espelho da realidade e deixado que a imaginação cavalgasse golfinhos pelo céu além, como se fossem cavalos selvagens à desfilada por uma reserva à beira do sonho e do mar.


Saímos da tenda das  imagens e perdemo-nos no mercado de tanta sensação. Eram sons, odores, sabores e cores. E também as dores que sentimos pelo corpo todo quando tacteámos o caminho de regresso às tendas que vendiam fruta e roupa. Comprámos trajos novos para outras ocasiões e cerejas para enfeitar as mãos no dia a dia. E também para motivar as conversas que deram vida nova às palavras que animaram este dia de mercado.


Apesar de tudo fizemos boas compras!


Augusto Mota, texto 68 de «A Geografia do Prazer», 1999



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