DIA DE MERCADO
Hoje era dia de mercado na cidade.
Vendia-se e comprava-se roupa. Vendia-se e comprava-se fruta. Mas dava-se
alegria. A alegria que as mãos sentiram ao percorrer os caminhos sinuosos e
sombreados por entre as tendas do mercado de levante. O calor era muito e
tivemos que repousar quando o sol
parecia querer atrasar os passos em direcção à tenda onde se expunham imagens
de sonho e de mar. Soubemos, deste modo, antecipar o que os olhos percorreram
no corpo dos frutos pintados na maré-cheia das emoções e das tintas e das
telas, quando o mar conseguiu trazer até nós o sabor e a cor das enormes maçãs,
à sombra das quais passeámos as mãos pelas sensações dentro. Se numa das telas
alguém dormia à beira-mar, encostado ao fruto do desejo, esse alguém era, por
certo, uma imagem antecipada do futuro recobrando forças para caminhar ao lado
do presente.
Como num espelho de duas faces, presente e
futuro confundem-se nas voltas sinuosas do olhar que se espraia por horizontes
longínquos, contrariando as mais elementares leis da perspectiva. Contrariando,
até, as leis da gravidade, ao imaginar alguém fugindo do presente e remando
afincadamente, num mar de nuvens encapeladas, em direcção ao futuro. Que
presente é este, então, de onde fugimos ao sabor das vagas que assolam o corpo
e arrastam as mãos para lá das imagens reflectidas num espelho já embaciado
pela maresia, ou pela transpiração ofegante das mãos? Se a tinta das maçãs, que
vimos a deslizar pelo glaciar abaixo, ainda estivesse fresca, teríamos aberto
nelas uma porta de acesso ao outro lado do espelho da realidade e deixado que a
imaginação cavalgasse golfinhos pelo céu além, como se fossem cavalos selvagens
à desfilada por uma reserva à beira do sonho e do mar.
Saímos da tenda das imagens e perdemo-nos no mercado de tanta
sensação. Eram sons, odores, sabores e cores. E também as dores que sentimos
pelo corpo todo quando tacteámos o caminho de regresso às tendas que vendiam
fruta e roupa. Comprámos trajos novos para outras ocasiões e cerejas para
enfeitar as mãos no dia a dia. E também para motivar as conversas que deram
vida nova às palavras que animaram este dia de mercado.
Apesar de tudo fizemos boas compras!
Augusto Mota, texto 68 de «A Geografia do Prazer», 1999
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