O ALBATROZ
Sempre fomos à praia. O mar não estava
calmo e o vento era forte demais para permitir navegação à vela. O sonho de
ontem foi levado pela vazante para longe da rebentação. Assim o veleiro de
verdura deve ter rumado a outras paragens menos agrestes, onde a folhagem das
velas não corresse o risco de antecipar o Outono e ficarem os mastros nus e o
casco à deriva até à próxima Primavera.
No entanto vimos o mar! E as mãos
entenderam o sofrimento dos olhos que moravam longe, longe como as palavras que
não foram ditas, mas apenas adivinhadas. Os olhos devem ter fugido atrás do
veleiro do sonho e arrastaram consigo todas as palavras que costumavam dizer de
nós, do sol, do vento, do mar e do ar. Devem estar agora no outro lado do mundo
à espera de ver o raiar de uma nova madrugada. E as palavras, por certo,
descansam ainda de uma longa e inesperada viagem. Mas quando acordarem
rejuvenescidas hão-de acompanhar uns olhos claros e sorridentes na viagem de
regresso às imagens que digam de nós, do sol, do vento, do mar e do ar. Do ar,
sobretudo. Porque as palavras gostam de voar céleres pelas novas significações
dentro, ou pairar acima das paisagens que rodeiam a cidade onde habitamos os
dias. Onde plantámos árvores. Onde colhemos frutos. E onde aquecemos as mãos e
a saudade.
Dizer do mar é fácil quando as palavras
vêm ao nosso encontro trazidas pelo vento sul e chegam aqui como se fosse o
barulho do mar bravo ecoando, em noite invernosa, sobre as dunas e as corutas
dos pinheiros.
Que dizer do vento? Além de transportar as
palavras que brotam de todas as fontes a sul da cidade, enfuna as velas de
todos barcos que semeamos nos nossos mares interiores, mesmo daqueles que rumam
aos mares quentes do sul e, sempre guiados pelo bom agoiro de algum
albatroz-real, fundeiam em porto da
nossa esperança.
E o sol? Esse aquece a alma e dá sabor aos
frutos. De manhã acorda as flores e as borboletas. Ao meio-dia ajuda-nos a
encontrar o norte. À tardinha parece esculpir as formas que os olhos percorrem
e ilumina o caminho das mãos. Depois esconde-se no mar e entristece as nuvens.
De nós, hoje, as palavras já disseram
tudo!
Augusto Mota, texto 67 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
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