sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A Geografia do Prazer

 
 
O ALBATROZ
 
 
Sempre fomos à praia. O mar não estava calmo e o vento era forte demais para permitir navegação à vela. O sonho de ontem foi levado pela vazante para longe da rebentação. Assim o veleiro de verdura deve ter rumado a outras paragens menos agrestes, onde a folhagem das velas não corresse o risco de antecipar o Outono e ficarem os mastros nus e o casco à deriva até à próxima Primavera. 
 
No entanto vimos o mar! E as mãos entenderam o sofrimento dos olhos que moravam longe, longe como as palavras que não foram ditas, mas apenas adivinhadas. Os olhos devem ter fugido atrás do veleiro do sonho e arrastaram consigo todas as palavras que costumavam dizer de nós, do sol, do vento, do mar e do ar. Devem estar agora no outro lado do mundo à espera de ver o raiar de uma nova madrugada. E as palavras, por certo, descansam ainda de uma longa e inesperada viagem. Mas quando acordarem rejuvenescidas hão-de acompanhar uns olhos claros e sorridentes na viagem de regresso às imagens que digam de nós, do sol, do vento, do mar e do ar. Do ar, sobretudo. Porque as palavras gostam de voar céleres pelas novas significações dentro, ou pairar acima das paisagens que rodeiam a cidade onde habitamos os dias. Onde plantámos árvores. Onde colhemos frutos. E onde aquecemos as mãos e a saudade.
 
Dizer do mar é fácil quando as palavras vêm ao nosso encontro trazidas pelo vento sul e chegam aqui como se fosse o barulho do mar bravo ecoando, em noite invernosa, sobre as dunas e as corutas dos pinheiros.
 
Que dizer do vento? Além de transportar as palavras que brotam de todas as fontes a sul da cidade, enfuna as velas de todos barcos que semeamos nos nossos mares interiores, mesmo daqueles que rumam aos mares quentes do sul e, sempre guiados pelo bom agoiro de algum albatroz-real, fundeiam em porto da nossa esperança.
 
E o sol? Esse aquece a alma e dá sabor aos frutos. De manhã acorda as flores e as borboletas. Ao meio-dia ajuda-nos a encontrar o norte. À tardinha parece esculpir as formas que os olhos percorrem e ilumina o caminho das mãos. Depois esconde-se no mar e entristece as nuvens.
  
De nós, hoje, as palavras já disseram tudo!
 
 
Augusto Mota, texto 67 de «A Geografia do Prazer», 1999
 
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
 


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