PLENILÚNIO
Procuro o tempo entre os espaços claros que a lua cheia deixa
marcados no relevo suave das encostas.
As árvores povoam de sombras os atalhos que nos levam às recordações de
ontem, quando, no planalto sobranceiro à memória do corpo, cruzámos os gestos e
os olhares ao ritmo dos segundos que pareciam esgotar a eternidade. Sobre estes
campos enluarados estamos a reviver o
percurso fértil pelas artérias da cidade e refazemos, no retiro da memória, o
ardor da caminhada até ao cimo de nós. Majestosa vista essa sobre o cansaço que
parecia querer esmagar a respiração, enquanto os olhos, bem abertos,
pronunciavam silêncios e mais desejos! Como hoje, o luar invadia as janelas e
atravessava as espessas cortinas da noite. A cidade não bulia como de costume.
O movimento dos carros, ao longe, chegava-nos como se fossem ondas
espraiando-se mansamente pelo areal. E a luz que recortava os gestos e beijava
a escuridão reanima-se hoje, aqui, enquanto repetimos, como invocação, as
mesmas palavras que ecoaram pelas ruas
mais secretas da cidade.
Os segredos das cidades reanimam-se, assim, com as palavras que
evoluem por entre os gestos e a escuridão e que, por vezes, até se escondem na
infância dos dias.
Abrimos o peito
ao fulgor desta lua cheia e deixamos que a natureza se entregue ao ritual
cíclico de sentir a claridade vaguear pelo tempo que oculta a memória precisa dos gestos. De
todos os gestos. Mesmo daqueles que, subitamente, vêm ao nosso encontro e nos
repetem todas as palavras que gostamos de ouvir através das noites límpidas e
frias de Inverno. Esses gestos ganham outro sentido quando, no segundo dia do
segundo mês de cada ano, anunciam o novo percurso do corpo por entre as
passagens estreitas do tempo. Desse tempo que vive do sonho e da realidade e
nos faz percorrer sendas perigosas no desfiladeiro das emoções, que este luar
ainda mais excita.
Hoje não há
concerto para elogiar datas e promessas. Os laranjais junto às fontes são já
melodia fresca e festiva. As águas calmas reflectem o sorriso claro da Lua e a
noite começa a minguar. Colhemos ainda romãs nos pomares à beira-rio e
procuramos, no alvor de um novo dia, orquídeas selvagens que bastem para
entrelaçar nos raios do Sol que, de mansinho, vai acordando a madrugada e a
vida.
Augusto Mota, texto 43 de «A Geografia do Prazer», 1999
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