quarta-feira, 12 de junho de 2013

A Geografia do Prazer

  
 A  BARCA  DAS  ILUSÕES
 
No mar das ilusões balança, à deriva, uma barca carregada de palavras e pinheiros mansos. O sol quente da tarde brilha sobre as copas verdes e as pinhas, como se quisesse amadurecê-las à pressa e lançar seus frutos às vagas do tempo. Ou à infância, entre os trabalhos e a paciência dos dias passados a apanhá-las, a aquecê-las, a debouçá-las, a britar os pinhões aos serões de Inverno, a torrar os pinhões no forno, aproveitando o resto do calor depois de ter cozido a broa, a fazer enfiadas de pinhões para pôr ao pescoço e ir comendo e andando. E ir andando e comendo. E ir comendo, por vezes, a própria linha da enfiada. E assim enfiámos pelas vagas do tempo onde, à deriva, balouça uma barca carregada de sol, pinheiros e palavras que, pacientemente, britamos neste serão de Inverno. As palavras, por vezes, são pequenas demais e britamos os dedos à procura do sentido próprio para a nossa enfiada de sensações que pomos ao pescoço em dia de festa. Mas festa só nossa. Íntima.
 
As sensações que mais prezamos não se vendem no alarido dos arraiais, antes se descobrem e se usam no festim que o silêncio traz até nós e que saboreamos com a delicadeza com que se comem, um a um, todos os pinhões de uma enfiada. Nesse paladar raro do pinhão bem torrado, mas ainda a lembrar a seiva que o alimentou, se justifica o sabor do silêncio e a festa que engrinalda os sentimentos. De tais sentimentos evolam-se os perfumes frescos que imaginamos terem debruado os cabelos de uma deusa romana e que hoje iremos servir à sombra dos pinheiros mansos, enquanto a barca, carregada de palavras, equilibra a sua carga no mar encapelado dos sentidos vários que atribuímos às coisas.
 
A viagem vai longa e, ao anoitecer, esperamos lançar ferro na baía da nossa esperança, fazer uma aguada breve e tomar provisões para cumprir a rota de circum-navegação à volta de nós. Pelo caminho deixaremos pinheiros mansos, como padrões, a disfarçar o nosso rasto. Nas pinhas escreveremos mensagens de vida que o mar transportará até às praias do futuro.
 
Quando lá arribarmos comeremos dos pinhões mais vingados e, asssim, ganharemos outro alento para melhores descobertas.
 
Augusto Mota, texto 44 de «A Geografia do Prazer», 1999 
 

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