sexta-feira, 14 de junho de 2013

A Geografia do Prazer


O  CICLO  DAS  SEMENTEIRAS

Junto do fogo moldámos as mãos ao sabor dos frutos que rescendiam à luz trémula das labaredas. Ateámos ainda mais o fogo e logo todo o pomar vibrou com o crepitar da lenha de pinho, que lançou mil chispas em todas as direcções, como se fosse artifício de festa. Era, antes, a natureza a festejar o seu ciclo das sementeiras de Inverno. E, também, da floração dos ramos  das amendoeiras. Em flor parece estar já tudo o que a fogueira incendeia e se reflecte nos olhos avermelhados pelo calor das brasas. E, nos gestos que cortam o silêncio, adivinhamos o abrir rosado das flores da magnólia que, como dedos sequiosos, afagam o orvalho que a noite vai fazendo cair em nossas mãos.
 
A frescura da noite avança sobre as horas que temos de cumprir. A fogueira vai-se extinguindo e as brasas mortiças já não conseguem enxugar as mãos e o orvalho.
 
Os botões da magnólia vão continuar a abrir durante toda a noite e, amanhã, os dedos  percorrerão, pétala a pétala, todas as flores em busca do fogo e dos frutos que moldaram as nossas mãos. E quando, na árvore nua de folhas, estiverem abertas todas as flores, será como que a natureza a festejar o seu artifício e a inaugurar o ciclo das sementeiras da Primavera. 
 
Augusto Mota, texto 45 de «A Geografia do Prazer», 1999
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.

Sem comentários:

Enviar um comentário