O CICLO DAS SEMENTEIRAS
Junto do fogo moldámos as mãos ao sabor
dos frutos que rescendiam à luz trémula das labaredas. Ateámos ainda mais o
fogo e logo todo o pomar vibrou com o crepitar da lenha de pinho, que lançou
mil chispas em todas as direcções, como se fosse artifício de festa. Era,
antes, a natureza a festejar o seu ciclo das sementeiras de Inverno. E, também,
da floração dos ramos das amendoeiras. Em flor parece estar já tudo o que a fogueira incendeia e se
reflecte nos olhos avermelhados pelo calor das brasas. E, nos gestos que cortam
o silêncio, adivinhamos o abrir rosado das flores da magnólia que, como dedos sequiosos, afagam o orvalho que a noite vai
fazendo cair em nossas mãos.
A frescura da noite avança sobre as horas
que temos de cumprir. A fogueira vai-se extinguindo e as brasas mortiças já não
conseguem enxugar as mãos e o orvalho.
Os botões da
magnólia vão continuar a abrir durante toda a noite e, amanhã, os dedos percorrerão, pétala a pétala, todas as flores
em busca do fogo e dos frutos que moldaram as nossas mãos. E quando, na árvore
nua de folhas, estiverem abertas todas as flores, será como que a natureza a
festejar o seu artifício e a inaugurar o ciclo das sementeiras da
Primavera.
Augusto Mota, texto 45 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
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