UM ALFOBRE DE ESTRELAS
O corpo está exausto e as mãos não reconhecem as cores do
arco-íris, nem o sabor do orvalho da madrugada. Por isso deslizam suavemente
pelas recordações amenas da tarde e procuram enganar os olhos com gestos e palavras
sem significado. É como se estivéssemos perdidos num deserto sem oásis no
horizonte. Ou como se o oásis prometedor já não oferecesse tâmaras para
alimentar a boca e água fresca para sagrar a caminhada pelas areias escaldantes
das dunas. As caravanas já passam muito ao longe e nem o perfume das flores do
deserto atrai os mercadores de sensações.
Agora só chega até nós o silêncio da noite
e o brilho das estrelas que recolhemos, felizes, em nossas mãos e que iremos
semear, em cama quente, como alfobre para a próxima Primavera. Esperaremos a melhor
Lua para que a sementeira seja pródiga e milhentas constelações nasçam e
incendeiem as noites futuras. E que no deslumbramento do universo saibamos
adivinhar qual a nova Estrela Polar que ditará o nosso rumo. Daremos às mãos as
coordenadas certas para que a aventura ultrapasse os territórios inóspitos onde
soçobram os olhos e as vontades. E, definindo a latitude correcta, esperamos
chegar ao arco-íris e lançar as pontes de uma nova aliança que saiba refrescar
os lábios da madrugada com o orvalho da noite anterior.
As recordações da
tarde, aliviadas agora do cansaço do corpo por uma voz que chegou de longe, de
um lugar perdido algures no perfume do deserto, serão como frutos exóticos colhidos junto aos olhos-d’água que alimentam
as tamareiras e a frescura do oásis.
Augusto Mota, texto 48 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
Sem comentários:
Enviar um comentário