A CURVA DOS DIAS
Enquanto o sol aquecia o vento que agitava
as heras do muro velho revimos os enxertos do ano passado e aliviámos-lhes as
cicatrizes das feridas forçadas. A operação de enxertia apanhou a Lua de feição
e a cura, agora, está em franco progresso. Em breve teremos frutos robustecidos
pelo cruzamento celular de ambos os sexos e, então, à sombra de uma frondosa
pérgola de kiwis hermafroditas, haveremos de beber do melhor vinho e comer do
melhor presunto com um bom naco de pão alentejano. Depois dormiremos uma sesta
reparadora e sonharemos com os sonhos antigos desfeitos pelo presente. E
sonharemos com o presente que ainda não foi desfeito pelos pesadelos do
passado.
O pão, o vinho e os frutos do estio
alimentarão as enxertias da nossa memória de ontem com as desilusões de hoje e,
assim, redimiremos as mãos que tanto trabalharam as ideias que nos enchiam a
cabeça e as conversas silenciosas à mesa do café, ou pelas vielas solitárias da
noite. Os traços e as cores que incendiavam os papéis diziam mais do que as
palavras que nunca dissemos. E os jornais que multiplicavam a arquitectura das
nossas cidades sitiadas eram o lenitivo para o arrastar húmido e cinzento dos
dias. Por isso inventámos metáforas de cidades e de mulheres. Por isso povoámos as praças de anseios e as
torres da barbacã de atentos vigilantes do nosso absurdo. E sobre essas cidades
do passado fizemos pairar poetas e pombas, que levavam longe as mensagens
secretas da vitória.
Hoje a vitória é outra, mas vive ainda
presa às ideias que germinam nas mãos que enxertam as palavras com novos
significados. Ou que enxertam nas árvores os frutos da nossa experiência para,
um dia, saborearmos tudo - os novos
significados e os novos frutos - à mesa do tempo, debaixo de uma pérgola
permanentemente em flor, enquanto o sol aquece o vento e agita as heras do muro
velho do pátio da nossa vida.
A vida, como a casa, resume-se, afinal, a
um pátio onde aquecemos os pés ao sol das recordações, abrigados do vento e a
imaginar, com saudade, a sombra das árvores a ultrapassar o círculo que os
nossos gestos foram traçando no chão, até fecharem a curva dos dias que ainda
nos pertencem.
Augusto Mota, texto 50 de «A Geografia do Prazer», 1999
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