sexta-feira, 14 de junho de 2013

A Geografia do Prazer


OS  TERNOS  VOOS  DA  MADRUGADA
 
Deitado sobre as palavras pinto, de preto, as letras que dão outro significado ao dia de hoje. Não é de luto, mas de sagração o sentido novo que nos transporta para lá do dizível, para o território íntimo do silêncio, onde os olhos não vêem e onde o tacto é a única sensação que nos guia no caminho de regresso. Como expiação percorremos os trilhos que contornam o rio e as fontes, para ser mais penosa a penitência e justa a absolvição. Andámos pelo ar e pelo mar. Andámos pela terra e pela serra. De um morro alto, dominando a enseada de S.Martinho e o porto, vimos grandes pássaros de cores garridas evoluindo sobre o nosso desejo de subir mais alto e, como eles, rodopiar ao sabor da força das correntes de ar. Das suas asas, bem abertas, pendiam cordas e homens que os forçavam a voos cada vez mais rasantes ao mar das nossas sensações. As cores vivas das diferentes plumagens brilhavam ao sol da tarde. Uns eram amarelos, outros vermelhos, outros de um verde que acentuava o cinzento azulado das arribas salpicadas pela espuma das ondas. A natureza completava o voo circundante das cores com gaivotas planando, também, ao ritmo do vento forte de noroeste, como se estivessem a desafiar os homens-pássaro a subir para além do infinito.
 
No infinito permaneceram as mãos, quentes e suadas do esforço do voo e da viagem. Voámos sobre a concha e um mar esverdeado de fim de tarde. Arrastámos as mãos até ao Sol e, antes que ele se escondesse para lá do horizonte, aconchegámos ao peito o sabor marítimo dos últimos raios. E com   eles   desenhámos,  a  verde,  no   chão  das   palavras,  as   promessas inespoeradas que ouvimos vir de longe. E sentimos, em nossas mãos, os cabelos do vento apontando o sul. Para aí voámos, em círculos apertados, em busca de poiso seguro. Tremeu a terra e o mar agigantou-se. E foi num mar agitado que descemos o olhar e o cansaço de tão urgente peregrinação. Aí repousámos a cabeça dorida do vento e das ondas que vinham até nós. Nas algas refrescámos as mãos, feridas do sol e do sul, e com elas vestimos o corpo da nossa esperança.
 
Viemos, de regresso, pelos súbitos atalhos da memória. Tudo se confunde no mesmo lugar, sobranceiro à baía, com vista para as sensações do corpo  e da cidade. Repete-se o espaço. E o tempo confunde-nos com aquele olhar que descobre os exactos caminhos do nosso progresso. E a ele, ao tempo, entregamos os gestos todos que hão-de anunciar os ternos voos da madrugada.
 
Chegámos antes de partir. Virámos ao contrário o mapa das sensações, mas não errámos o própósito da viagem. Amanhã continuaremos deitados sobre as  palavras a pintar, de preto, as letras que darão um melhor significado ao dia de hoje.
 
 Augusto Mota, texto 46 de «A Geografia do Prazer», 1999      

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