OS TERNOS VOOS DA MADRUGADA
Deitado sobre as palavras pinto, de preto,
as letras que dão outro significado ao dia de hoje. Não é de luto, mas de
sagração o sentido novo que nos transporta para lá do dizível, para o
território íntimo do silêncio, onde os olhos não vêem e onde o tacto é a única
sensação que nos guia no caminho de regresso. Como expiação percorremos os
trilhos que contornam o rio e as fontes, para ser mais penosa a penitência e
justa a absolvição. Andámos pelo ar e pelo mar. Andámos pela terra e pela
serra. De um morro alto, dominando a enseada de S.Martinho e o porto, vimos
grandes pássaros de cores garridas evoluindo sobre o nosso desejo de subir mais
alto e, como eles, rodopiar ao sabor da força das correntes de ar. Das suas
asas, bem abertas, pendiam cordas e homens que os forçavam a voos cada vez mais
rasantes ao mar das nossas sensações. As cores vivas das diferentes plumagens
brilhavam ao sol da tarde. Uns eram amarelos, outros vermelhos, outros de um
verde que acentuava o cinzento azulado das arribas salpicadas pela espuma das
ondas. A natureza completava o voo circundante das cores com gaivotas planando,
também, ao ritmo do vento forte de noroeste, como se estivessem a desafiar os
homens-pássaro a subir para além do infinito.
No infinito permaneceram as mãos, quentes
e suadas do esforço do voo e da viagem. Voámos sobre a concha e um mar
esverdeado de fim de tarde. Arrastámos as mãos até ao Sol e, antes que ele se
escondesse para lá do horizonte, aconchegámos ao peito o sabor marítimo dos
últimos raios. E com eles desenhámos,
a verde, no
chão das palavras,
as promessas inespoeradas que ouvimos vir de longe. E
sentimos, em nossas mãos, os cabelos do vento apontando o sul. Para aí voámos,
em círculos apertados, em busca de poiso seguro. Tremeu a terra e o mar
agigantou-se. E foi num mar agitado que descemos o olhar e o cansaço de tão
urgente peregrinação. Aí repousámos a cabeça dorida do vento e das ondas que
vinham até nós. Nas algas refrescámos as mãos, feridas do sol e do sul, e com
elas vestimos o corpo da nossa esperança.
Viemos, de regresso, pelos súbitos atalhos
da memória. Tudo se confunde no mesmo lugar, sobranceiro à baía, com vista para
as sensações do corpo e da cidade.
Repete-se o espaço. E o tempo confunde-nos com aquele olhar que descobre os
exactos caminhos do nosso progresso. E a ele, ao tempo, entregamos os gestos
todos que hão-de anunciar os ternos voos da madrugada.
Chegámos antes de partir. Virámos ao
contrário o mapa das sensações, mas não errámos o própósito da viagem. Amanhã
continuaremos deitados sobre as palavras
a pintar, de preto, as letras que darão um melhor significado ao dia de
hoje.
Augusto Mota, texto 46 de «A Geografia do Prazer», 1999
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