O ÊXTASE DO APETITE
Almoçamos à luz do sol que se reflecte, ao
meio dia, num mar de iguarias que enche os nossos pratos. Agora os frutos são
do mar e saboreamos o vinho e o pão, enquanto os olhos se cruzam em tons que
vão da esperança verde ao subtil azul, indício feliz de quem parece ter
compreendido como metáfora pode ser mulher ou, simplesmente, uma ilha de luz
brilhando no mar e dentro de nós, por mercê de uma mão que afaga o nosso
contentamento.
A mesa é farta de comeres e recordações. A
memória surge entre o deglutir prazenteiro dos frutos marinhos, do pão e do
vinho. Comprometedor ritual este que prolonga o tempo que queremos viver no
sabor da comida e nas palavras que alimentam os desejos. Desejos de mais comida
e de mais bebida, até que a fome que sentimos encontre um justo caminho de
eleição. Mas de uma eleição sem votos, antes uma preferência nossa, por nós e
para nós, sem lamentações, nem queixumes. É que quando os olhos brilham na
justa proporção do desejo que aparentam tudo se torna mais fácil: o mar já não
tem que ser outra coisa senão o sabor do sal que tempera o corpo e o alimento
que lhe dá outra vida.
Agora já podemos regressar, bem
alimentados de luz, de formas e de sabores que guardamos no mais íntimo das
mãos. Tanta intimidade é outra e diferente refeição para o prazer dos olhos que
tacteiam, milímetro a milímetro, o corpo dos nossos caprichos.
Tanta saudade apressa a vertigem e novos
sabores extasiam um outro apetite. Por isso devoramos o tempo e deixamos para
trás as promessas que intimidam os dias da vitória. Soltam-se pombas brancas
por entre os lábios e as mãos agitam bandeiras de paz. Os olhos querem chorar
tamanha plenitude, mas o calor dos gestos seca as lágrimas e o sal acentua o
prazer e o silêncio da harmonia.
Agora já é noite feita e tudo ficou,
subitamente, diferente. A angústia das viagens longas emudeceu por entre as
promessas de um acaso que saberá aproveitar a sabedoria dos dias que caminham
ao nosso encontro. Deles tiraremos proveito e com eles festejaremos a memória
que alimentará a sensação do nosso existir.
Augusto Mota, texto 23 de «A Geografia do Prazer», 1998
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