domingo, 14 de abril de 2013

A Geografia do Prazer


O  ÊXTASE  DO  APETITE
 
Almoçamos à luz do sol que se reflecte, ao meio dia, num mar de iguarias que enche os nossos pratos. Agora os frutos são do mar e saboreamos o vinho e o pão, enquanto os olhos se cruzam em tons que vão da esperança verde ao subtil azul, indício feliz de quem parece ter compreendido como metáfora pode ser mulher ou, simplesmente, uma ilha de luz brilhando no mar e dentro de nós, por mercê de uma mão que afaga o nosso contentamento.
 
A mesa é farta de comeres e recordações. A memória surge entre o deglutir prazenteiro dos frutos marinhos, do pão e do vinho. Comprometedor ritual este que prolonga o tempo que queremos viver no sabor da comida e nas palavras que alimentam os desejos. Desejos de mais comida e de mais bebida, até que a fome que sentimos encontre um justo caminho de eleição. Mas de uma eleição sem votos, antes uma preferência nossa, por nós e para nós, sem lamentações, nem queixumes. É que quando os olhos brilham na justa proporção do desejo que aparentam tudo se torna mais fácil: o mar já não tem que ser outra coisa senão o sabor do sal que tempera o corpo e o alimento que lhe dá outra vida.
 
Agora já podemos regressar, bem alimentados de luz, de formas e de sabores que guardamos no mais íntimo das mãos. Tanta intimidade é outra e diferente refeição para o prazer dos olhos que tacteiam, milímetro a milímetro, o corpo dos nossos caprichos.
 
Tanta saudade apressa a vertigem e novos sabores extasiam um outro apetite. Por isso devoramos o tempo e deixamos para trás as promessas que intimidam os dias da vitória. Soltam-se pombas brancas por entre os lábios e as mãos agitam bandeiras de paz. Os olhos querem chorar tamanha plenitude, mas o calor dos gestos seca as lágrimas e o sal acentua o prazer e o silêncio da harmonia.
 
Agora já é noite feita e tudo ficou, subitamente, diferente. A angústia das viagens longas emudeceu por entre as promessas de um acaso que saberá aproveitar a sabedoria dos dias que caminham ao nosso encontro. Deles tiraremos proveito e com eles festejaremos a memória que alimentará a sensação do nosso existir.
 
Augusto Mota, texto 23 de «A Geografia do Prazer», 1998
 

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