segunda-feira, 15 de abril de 2013

A Geografia do Prazer


O  VELO  DE  OURO 

É manhã e estamos no cabo do mundo. Virados a sul adivinhamos, por entre a névoa, o país de onde viemos. Encostamos as saudades ao nosso silêncio e lançamos promessas sobre o Mondego lá em baixo, como quem arremessa a tarrafa à pesca de grandes sensações. Mas a rede é de malha larga e a pescaria foge aos nossos íntimos desejos. Compensa-nos a bem-aventurança de tanto sol a inundar a paisagem dos nossos horizontes secretos.
 
Que pescado é este que vive, permanentemente, no estuário das nossas emoções? Assim o rio cumprirá um destino diferente e o mar será já outro mar, talvez uma serena superfície líquida que se confunde com o prazer que sentimos ao ver as ruas da nossa cidade serem navegadas por barcos e mãos, como se continentes perdidos estivessem à espera do nosso achamento. Novas naus cruzam as avenidas de tanta comparação e tudo o que vemos remete a descoberta para a sabedoria dos livros que ocupam as estantes reservadas da nossa biblioteca particular. Folheamos o saber das páginas que vivem em nossa memória e exercitamos a educação dos gestos para assumir uma rota certa para a navegação dos sentimentos. Líquidos são estes sentimentos, porque desaguam num mar onde a faina se anuncia mais exigente e temerosa. Pobres pescadores somos nós que vivemos e trabalhamos entre as margens dos continentes e dos dias!
 
A quem culpar por tamanho risco em nosso projecto? Apertamos ainda mais a malha de nossas artes e encontramos a justificação de tanto esforço. Neste líquido pomar os frutos são outros e, juntos, os saboreamos contando histórias de um passado aprendido entre as viagens e as noites, entre as dunas e o mar, entre nós e nós.
 
Novos são estes frutos que o mar refez em nossos gestos e em nossas bocas! O sal é tempero certo para a certeza que domina os olhos e a mesa de tão secreta refeição. Onde aprender outras maneiras de servir e estar à mesa de tal banquete? Inventaremos etiquetas mais apropriadas ao ritmo que os trabalhos e os dias impõem. Contrataremos firmas mais especializadas para aconselharem o que desejamos viver e alimentar. E pagaremos o justo imposto das conveniências nos momentos discretos que queremos viver junto dos outros.
 
Assim pacificados, vamos continuar virados a sul e a lançar mútuas promessas de outras viagens que adivinhem o país onde estamos. Do cimo do Cabo Mondego, onde permanecemos, o horizonte abarca todos os pontos cardeais e podemos, até, escolher uma outra rota para aplicar melhor a experiência de verdadeiros argonautas que somos.
 
A demanda do velo de ouro justifica as exigências de semelhante navegar.
 
Augusto Mota, texto 24 de «A Geografia do Prazer», 1998
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.

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