É manhã e estamos no cabo do mundo.
Virados a sul adivinhamos, por entre a névoa, o país de onde viemos. Encostamos
as saudades ao nosso silêncio e lançamos promessas sobre o Mondego lá em baixo,
como quem arremessa a tarrafa à pesca de grandes sensações. Mas a rede é de
malha larga e a pescaria foge aos nossos íntimos desejos. Compensa-nos a
bem-aventurança de tanto sol a inundar a paisagem dos nossos horizontes
secretos.
Que pescado é este que vive,
permanentemente, no estuário das nossas emoções? Assim o rio cumprirá um
destino diferente e o mar será já outro mar, talvez uma serena superfície
líquida que se confunde com o prazer que sentimos ao ver as ruas da nossa
cidade serem navegadas por barcos e mãos, como se continentes perdidos
estivessem à espera do nosso achamento. Novas naus cruzam as avenidas de tanta
comparação e tudo o que vemos remete a descoberta para a sabedoria dos livros
que ocupam as estantes reservadas da nossa biblioteca particular. Folheamos o
saber das páginas que vivem em nossa memória e exercitamos a educação dos
gestos para assumir uma rota certa para a navegação dos sentimentos. Líquidos
são estes sentimentos, porque desaguam num mar onde a faina se anuncia mais
exigente e temerosa. Pobres pescadores somos nós que vivemos e trabalhamos
entre as margens dos continentes e dos dias!
A quem culpar por tamanho risco em nosso
projecto? Apertamos ainda mais a malha de nossas artes e encontramos a
justificação de tanto esforço. Neste líquido pomar os frutos são outros e,
juntos, os saboreamos contando histórias de um passado aprendido entre as
viagens e as noites, entre as dunas e o mar, entre nós e nós.
Novos são estes frutos que o mar refez em
nossos gestos e em nossas bocas! O sal é tempero certo para a certeza que
domina os olhos e a mesa de tão secreta refeição. Onde aprender outras maneiras
de servir e estar à mesa de tal banquete? Inventaremos etiquetas mais
apropriadas ao ritmo que os trabalhos e os dias impõem. Contrataremos firmas
mais especializadas para aconselharem o que desejamos viver e alimentar. E
pagaremos o justo imposto das conveniências nos momentos discretos que queremos
viver junto dos outros.
Assim pacificados, vamos continuar virados
a sul e a lançar mútuas promessas de outras viagens que adivinhem o país onde
estamos. Do cimo do Cabo Mondego, onde permanecemos, o horizonte abarca todos os pontos
cardeais e podemos, até, escolher uma outra rota para aplicar melhor a
experiência de verdadeiros argonautas que somos.
A demanda do velo de ouro justifica as
exigências de semelhante navegar.
Augusto Mota, texto 24 de «A Geografia do Prazer», 1998
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
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