A TRAVESSIA DA VAZANTE
De mãos dadas sobre o vértice do universo
ouvíamos o Adágio em sol menor de Albinoni, enquanto as gaivotas, como flores aladas, desabrochavam nas ínsuas da vazante. A
ponte passou por nós a caminho da foz e uma figueira
frutificou entre a névoa da manhã e o sol nascente. Como mel, seus frutos
adocicaram a paz que envolvia o espanto de nossa boca e eternizaram o descanso
de tanta ave no meio do estuário florido de branco.
A este tempo de servidão e certidão
confiámos o nosso trajecto e logo outras viagens impuseram novos desejos. Que
apenas queriam saborear os figos e o mel que ia subindo pelas mãos acima. A
elas entregámos o sabor da manhã, a motivação das aves, a travessia da vazante.
Uma ponte é
sempre uma passagem para o outro lado das palavras que motivam a manhã, as aves
e os frutos da vazante. O regresso à justiça dos dias é que torna penosa a
significação das palavras que descansam nos livros, ou em nossas mãos.
Augusto Mota, texto 22 de «A Geografia do Prazer», 1998
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
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