11 A VÉSPERA DO CORPO
É tão forte a sensação de desfilada sobre
o jardim acolchoado de malvas e rosas bravas que, como corcéis de crinas ao
vento frio do norte, nos perdemos pelos ínvios caminhos do prazer entre as mãos
e as colinas sonhadas, por onde suavemente sobe um rio que regressa à nascente.
Que reencontro difícil este entre a memória e a vertigem dos dias que já
passaram! A nova cidade impõe-se em cada gesto que acompanha a sagração de tal
rio, como se todas as religiões do mundo nos encaminhassem para o vértice do
universo.
Atávica inibição esta de regressar ao
passado, com mãos apartando colinas e desejos, ultrapassando, sobretudo, as
recordações que se imiscuem entre os dedos e subjugam o corpo todo! Desejar é,
assim, uma outra maneira de sofrer ou de querer adiar o desencontro. Só as
mãos, portanto, saboreiam os segundos de cada fruto, como se o relógio de tempo
estivesse na hora legal!
Preferível será estar sentado na cadeira
do tempo e esperar que o rio volte a descer por nossos braços e desagúe num mar
renovado de emoções:
os corcéis do tempo agigantam a hora que passa e se dissolve como música em nossas artérias. vemos o infinito na palma da mão e agradecemos ao poeta tal augúrio da inocência. por isso um céu brilha em cada flor selvagem que acoberta os corpos da nossa razão. um estertor inunda todos os gestos e parece anunciar o fim da desfilada. o vento norte mudou de rumo e, agora, uma lufada morna aquece as frontes e abre, deliciada, as portas de uma outra percepção. a paisagem muda de ritmo. o outono anuncia-se no escarlate das folhas que se despedem das árvores e de nós. o silêncio é partitura nova partilhada com emoção. o diálogo renova a despedida das folhas que já atapetam os nossos olhos. novo húmus fecundará a próxima estação dos corpos e amanhã recordaremos as mãos, as flores, os frutos e, novamente, as mãos, as flores, os frutos e as alegrias do tempo que vive e morre em nós e na correria louca dos corcéis no amanhecer selvagem de uns olhos aguados a caminho do mar e da liberdade.
Os jardins são feitos de espera e de
emoções. Os dias são as estações que regamos com nossos anseios. Os frutos,
esses, serão colhidos na véspera de tudo.
Augusto Mota, texto 11 de «A Geografia do Prazer», 1998
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
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