domingo, 24 de fevereiro de 2013

A Geografia do Prazer

11  A VÉSPERA DO CORPO
 
É tão forte a sensação de desfilada sobre o jardim acolchoado de malvas e rosas bravas que, como corcéis de crinas ao vento frio do norte, nos perdemos pelos ínvios caminhos do prazer entre as mãos e as colinas sonhadas, por onde suavemente sobe um rio que regressa à nascente. Que reencontro difícil este entre a memória e a vertigem dos dias que já passaram! A nova cidade impõe-se em cada gesto que acompanha a sagração de tal rio, como se todas as religiões do mundo nos encaminhassem para o vértice do universo.
 
Atávica inibição esta de regressar ao passado, com mãos apartando colinas e desejos, ultrapassando, sobretudo, as recordações que se imiscuem entre os dedos e subjugam o corpo todo! Desejar é, assim, uma outra maneira de sofrer ou de querer adiar o desencontro. Só as mãos, portanto, saboreiam os segundos de cada fruto, como se o relógio de tempo estivesse na hora legal!
 
Preferível será estar sentado na cadeira do tempo e esperar que o rio volte a descer por nossos braços e desagúe num mar renovado de emoções:
 
os corcéis do tempo agigantam a hora que passa e se dissolve como música em nossas artérias.     vemos o infinito na palma da mão e agradecemos ao poeta tal augúrio da inocência.     por isso um  céu brilha em cada flor selvagem que acoberta os corpos da nossa razão.     um estertor inunda todos os gestos e parece anunciar o fim da desfilada.     o vento norte mudou de rumo e, agora, uma lufada morna aquece as frontes e abre, deliciada, as portas de uma outra percepção.    a paisagem muda de ritmo.   o outono anuncia-se no escarlate das folhas que se despedem das árvores e de nós.     o silêncio é partitura nova partilhada com emoção.     o diálogo renova a despedida das folhas que já atapetam os nossos olhos.    novo húmus fecundará a próxima estação dos corpos e amanhã recordaremos as mãos, as flores, os frutos e, novamente, as mãos, as flores, os frutos e as alegrias do tempo que vive e morre em nós e na correria louca dos corcéis no amanhecer selvagem de uns olhos aguados a caminho do mar e da liberdade. 
  
Os jardins são feitos de espera e de emoções. Os dias são as estações que regamos com nossos anseios. Os frutos, esses, serão colhidos na véspera de tudo.  
 
 
Augusto Mota, texto 11 de «A Geografia do Prazer», 1998
 
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
                                                                                               

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