quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

A PONTE

 


Augusto Mota, «Tropismo», 59 x79 cm, tinta plástica sobre platex, 1960
 

Na verdade nunca fui ponte, mas, hoje, senti bem a natureza da sua ligação em horizontal, da sua projecção em suave arco aviajado alongando-se no espaço, como que a contradizer o tropismo que nela se começava a desenvolver, impedindo, assim, a travessia para o outro lado. Ao fundo, mas muito ao longe, avistava-se, por baixo do arco, a cidadela no seu deslumbramento de luzes esbatidas nas águas da vazante. O porto, silencioso da faina, animava-se só com o esvoaçar hesitante das gaivotas. O poente ainda se riscava de vermelho, enquanto o astro não desaparecia totalmenente na linha do horizonte. Mar e terra sofriam agora a angústia de um volver de atmosfera e os homens na cidade acautelavam os seus afazeres acendendo, antecipadamente, milhares de lâmpadas em arraial.
 
"A ponte!  A ponte!"
 
O astro desapareceu totalmente e a ponte permaneceu firme na sua estrutura de betão e ferro que a consolidava no leito lodacento do rio e a água, cada vez mais na vazante, fecundava os pontos de nascença do arco, excitando o tropismo que iniciou a barragem à peregrinação que se aproximava. Como semente germinando extemporaneamente, a lua cheia derramou centelhas de luar sobre a ponte e logo saltaram, precisos e erectos, troncos e gavinhas que foram crescendo em ascese apoteótica, enquanto os peregrinos se esforçavam por ultrapassar este obstáculo, entoando rima profanas.
 
"Contornemos o obstáculo!"
 
E todos se prepararam para descer o arco de suporte da ponte, julgando, assim, iludir a verticalidade que se lhes opunha. Numa necessidade de geotropismo o obstáculo prolongara as suas gavinhas em direcção ao leito do rio e formara uma muralha compacta de lianas que repercutiam o marulhar da água, como se fossem tubos de um gigantesco órgão sacro. Então feriu os ares uma célebre melodia religiosa e os peregrinos recuaram assustados e, céleres, procuraram ajoelhar-se, enquanto a estrutura da ponte acusava as vibrações das cordas sonantes e ameaçava ruína neste frenesim que aumentava cada vez mais.
 
"O tropismo!  O tropismo!"
 
Estavam salvos os peregrinos, quando compreenderam que se encontravam precisamente no ponto de concorrência das quatro linhas que definem um sistema de ponte em qualquer situação geográfica.
 
 
Augusto Mota, texto  8  de  «Metáfora, », 1960
 
 
- textos de iniciação e reconhecimento.

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