quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

GÉNESE

   
 
Augusto Mota, «Vórtice, ou a génese do feto nuclear», 30 x 40 cm, óleo sobre cartão, 1958
 
 
...E um dedo enorme saíu do vácuo e atravessou o espaço neutro que separava a escuridão do indefinido, do plano da realização futura. E o dedo cresceu e o dedo aproximou-se cada vez mais da realização que a si mesmo impôs. A superfície já lá estava. Branca e morta, branca e sem vida. Mas uma luz roxa quebrou o movimento silencioso do dedo enorme que se deslocava no espaço e veio anunciar a vida futura, veio dizer como a cor seria vida e o branco deixaria de ser morte, como o preto era a cor mais garrida e como esse preto era uma mistura de todas as cores.
 
Foi então que os dois mundos entraram em conflito e com a energia activa de um e a mórbida passividade do outro, um neutro intermediário iniciou a génese do desconhecido...
 
O dedo enorme criou um turbilhão de círculos de cores contrárias e decrescentes que se espalhavam pelo horizonte e quase tapavam as montanhas que lá ao fundo o amarelo triste do sol poente fazia realçar. E os círculos em turbilhão moviam-se sem cessar e as cores sucediam-se como fumo...
 
Então o dedo enorme parou e contemplou a sua obra e riu-se e as suas gargalhadas quase o atemorizaram quando o eco ficou a soar no espaço e chegou ao vácuo donde o dedo enorme saíra. Mas o eco das gargalhadas aumentou e começou a transformar-se em gritos horríveis, gritos variados mas sempre horríveis, gritos de mulheres grávidas e gritos de hecatombe... E o dedo enorme começou a encher-se de pêlos asquerosos e quase se arrependeu de ter saído do vácuo eterno onde habitava. E os pêlos asquerosos gritaram-lhe a sua culpa e ao transformarem-se em dedos pequeninos aniquilaram o gigante perverso que correu a refugiar-se dos gritos de mulheres grávidas e dos gritos de hecatombe. Então todos aqueles dedos pequeninos quiseram remediar o mal do gigante perverso e entregando-se às suas funções sorriam quando os gritos horríveis e variados se transformaram em melodia universal de confiança e amor!
 
E foi logo a seguir que eles viram aparecer uma mulher preta e nua, que corria e cantava. Era ela a confiança e o amor, era ela que levantava os braços para o ovo gigante da humanidade nascente que se gerou no turbilhão de círculos de cores contrárias e decrescentes. Eram dela os gritos de mulher grávida, eram dela os gritos de hecatombe, porque ela gerou a humanidade nova e gerou a humanidade que produziu a hecatombe. Mas ela é mãe e tem esperança, porque tem amor ao que criou. Por isso ergue os braços para o ovo da humanidade nova e entoa a canção da vida e da promessa sincera de um futuro harmonioso. Mas ela corre através dum deserto amarelo, ela a mãe nua e preta, de seios carnudos de quem gerou uma humanidade, e esse deserto é infindável porque é o deserto amarelo do desespero. Mas a mãe nua quer alcançar o que ela gerou e, por isso, o deserto não é infindável. Ela tem fé, porque tem amor!...
 
Mas ao longe, no vórtice de cores contrárias e decrescentes, o ovo gigante começou a abrir brechas de casca ressequida e um estampido abalou a atmosfera do deserto amarelo. E do ovo gigante surgiu um rebento de árvore verde que, em contacto com a nova atmosfera, tomou proporções desmedidas e vários ramos cruzaram o ar com as suas pontas afiadas de vida nova. A mãe nua saudou a nova génese e afirmou a sua confiança numa humanidade mais forte, personificada naquela árvore cheia de vida, com as suas raízes bem presas na areia amarela do desespero e os seus ramos pontiagudos bem lançados a caminho do infinito, onde se encontram os seres bons e universais...
 
 
Mas dum ramo mais fraco ela viu uma corda fina suspender-se e mesmo na ponta uma bola preta apareceu e logo foi aumentando até se transformar num morto, um homem morto e enforcado, que pendia mesmo sobre a bocarra hiante do turbilhão de cores decrescentes que o dedo enorme criara. A mãe nua sentiu o corpo estremecer e os seios carnudos e pretos começaram a engelhar, pois ela sabia bem que aquilo representava a morte da humanidade que ela própria gerara no seu ventre escuro. Ah! Mas como ela voltou a correr de braços abertos ao encontro do ovo gigante quando viu o homem enforcado transformar-se num ovo pequenino de madrepérola! É que isto foi o sinal renovado de uma confiança universal e ela pressentiu-o, ela a mãe duma humanidade nova.
 
 
E lá ficou a balançar no fraco ramo da árvore, mesmo sobre o abismo de cor e movimento, aquele sinal de madrepérola. 
 
Mas a pouco e pouco mais ovos se ergueram do chão amarelo e sempre mais e cada vez mais, até cobrirem o horizonte de montanhas batidas pelo amarelo triste do sol poente e aniquilarem o espectro daquele menino podre, daquele monstro genético que, lentamente, se foi elevando no infinito céu azul.
 
Só então a mãe nua alcançou o ovo gigante e atravessando o bosque de névoa verde que ainda o sustinha, gritou: Génese! Génese! Génese!
 
 
E assim foi destruída a lenda do dedo enorme que acreditava na génese de uma humanidade perdida...
 
Augusto Mota, in «Quadriculado» - caderno de prosa, edição do autor, Coimbra, 1959, pp. 5 a 7
 
Obs.: Este texto, de sequência algo onírica, baseia-se no processo criativo e no universo da pintura acima reproduzida.
  

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