OS CAMINHOS DO ACASO
A quem vamos oferecer as rosas e as espigas secas pelo
tempo e pela ausência? Por certo à memória da cidade onde vivemos outrora o
ciclo de muitas estações, procurando, entre a Primavera e o Outono, plantar as
memórias floridas do nosso futuro, memórias que secaram muito antes do nosso
último e íntimo Inverno. Traiu-nos a esperança de tanto esperar. Fugiu-nos o
horizonte dos poentes frios, mas prometedores, dos fins de tarde de Outono à
beira- mar, ou no meio dos pinhais a ouvir, ao longe, o marulhar das ondas e a
sentir o cheiro agridoce das camarinhas que íamos ripando pelo caminho e
comendo às mancheias. Ficou a memória de tudo isto, bem como do ritual de fazer
geleia com tais bagas silvestres, o que prolongava a calma dessas tardes
vividas entre o prazer e a paixão. O resto ficou gravado, como se fora um
epitáfio, na memória da natureza, que recolhe e reconhece todos os gestos bons
que fazemos em seu e em nosso proveito.
Se hoje outras rosas negras vêm ao nosso encontro,
orvalhadas pela maresia e pelas lágrimas, é porque a natureza reconhece não só os gestos bons que guardámos
na memória, mas também o destino das promessas feitas em intenção de despedida,
como se tudo fosse tão fácil, ou difícil, como apanhar um comboio na gare, a
caminho do Oriente. Só que para tal viagem sem retorno as despedidas são mais
embaraçosas, as palavras não têm significado e os olhares cruzam-se num
horizonte de angústia. Que promessas, então, se podem fazer, para além de
algumas palavras que morrem no absurdo do momento?
Hoje, em cada rosa viva que colhemos nos caminhos do
acaso, cumpre-se ainda o absurdo das viagens empreendidas sem rota programada,
nem espírito de aventura, mas em seus espinhos refrescamos os lábios e os
olhos, como se fôssemos um jardineiro-mestre encantado com os resultados de
suas experiências botânicas. Com desvelo acariciamos o perfume silencioso das
pétalas e guardamos a flor inteira no mais secreto solitário que enfeita o
nosso trabalho e motiva as palavras escritas no frio isolamento das
noites.
Uma nova Primavera
há-de antecipar, por certo, as narrativas justas e íntimas das tardes de
Outono vividas à beira-mar, entre rosas e esperanças e, assim, aquecer a
memória dos dias.
Augusto Mota, texto 36 de «A Geografia do Prazer»,1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
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