Pareceu-me traição ter ficado encostado a uma coluna enquanto, bem
dentro de mim, não aceitava a despedida. É sempre mais justo que seja eu a
partir. Pelo menos disfarça-se mais a fraqueza. Assim fiquei triste e alheio e,
de repente, comecei a achar tudo estúpido. Tudo, isto é, a vida a estação, o
porteiro, eu a entregar um bilhete
que foi separação (era curioso que nas
estações se pudessem comprar bilhetes de separação… Era curioso e estúpido!), a
cidade lá fora com um Domingo que também foi nosso e eu outra vez só com a
minha tristeza e as mãos saudosas da
mossa liturgia solar. Fiquei triste como um menino que enfrenta sozinho as ruas
e as casas de uma cidade pela primeira vez. Por breves momentos caiu-me toda a
vida em cima e não to consegui dizer quando o adivinhaste e me tentavas animar.
É que eras ali toda a minha razão de ser, não só futura, mas de todo o passado.
De repente como que se justifica a utilidade de toda a inutilidade,
como que se vitaliza numa separação o
dom subtil de um acto:
“Dá-me um bilhete-de-gare-de-separação!”
(O comboio
rápido parte com atraso de dez minutos).
Toda a vida se resume a um atraso. Cada minuto de recuperação é uma
viagem ao encontro da ligação para o infinito de nós.
Depois, vertigem de mim. Não sei quem fui. Perdi-me passeando até ao
cansaço físico. Conversei alheado de tudo, porque eu era ainda todo-outro. Não
estava, nem ia. Era. Era nas mãos a saudade. Era nas mãos o sol. Era nas mãos a calma da vegetação que nos acolheu em silêncio. Sobretudo
era, sinto-o, o respeito cada vez mais nítido das nossas duas e amplas fontes
de vida. Isto é, cada vez mais consciência de um respeito e de uma
naturalidade.
É bom que este processo de individualização seja comum e paralelo, porque é
beleza. E beleza é necessidade que não morre, já que ser perene é parte
integrante e principal de sua própria definição. E aqui não será erro definir
com o definidor. Beleza é beleza. Um copo é um copo. No entanto só percebemos
bem o copo quando o amamos em nosso amor e necessidade, por via da água.
Percebemos, então, que o copo tem em si uma função, para além do existir em
vidro. Realiza-se quando tem água e serve uma transição.
Hoje existir é ter audaciosa liberdade, mas cá dentro. Ama-se, mas cá
dentro. O que se vê é sempre fruto de outras coisas que nada têm a ver com
amor. Este é de dentro. Mas também é das mãos. Este é de dentro. Mas também é
dos olhos. Olhos e mãos são a conjugação gramatical para quem não sabe dizer
outros, ou nenhuns pronomes pessoais. São o eu absoluto feito tu. São o
processo maravilhoso de outra forma de poesia, porque maior. São em sua
insaciável e plástica substância a identificação total dos sub-planos e dos
super-planos de nossa física e metafísica existência.
Na confiança que conhece se funda a confiança na vida. Neste
voluntarioso acto de aceitação se baseia, pois, a amizade e a energia que
dominamos. A amizade de sangue quebrou barreiras, não de escrúpulos, mas de
sociedade, deixando que se fortaleça cada vez mais o respeito de e a
algo que não se pode definir, mas que parece radicar em nossa própria carne e
em nosso próprio espírito.
Agradeço-te, mulher ou cidade, a saudade que me fazes ter de ti. Mas
saudade-sempre. Hoje e quando habitas em meus olhos pelo favor da distância,
mas da física. Por isso me torço e me envolvo e me canso para me dar todo à
memória da tua presença. Fixo, porém, a vista numa escada e tenho saudade de
ti. Fixo a vista outra vez na escada e tenho saudade de ti. Por isso quando
estou longe, ou abstracto, pode ser por saudade de ti. Às vezes é de mim. Por
pena de mim. Por morte de mim. Para vida de mim.
Tudo é tão estranho e subtil, hoje! Hoje o quê? Hoje, sobretudo. Hoje
que existo por dom da palavra e da distância verbal de meus desejos e
sentimentos. Por isso estou calmo. Talvez por não saber nenhum pronome pessoal
para a conjugação do nosso verbo. Calmo por saber que esta ignorância é douta
em sua maravilhosa e natural sublimação. Não há castigos, nem promessas do
mestre. Há um existir em mãos no sol, em mãos na água, em mãos no fogo, em mãos
na terra. Em nossas mãos existe o favor dos pontos cardeais. Por nós o norte,
por nós o sul, por nós o leste, por nós o oeste.
Assim virados para o mundo em tal favor, corramos dentro de nós mesmos
e abracemo-nos lá onde as mãos parecem calar-se, por grandeza ou complexo, mas
onde os olhos já são suficientemente grandes para se aceitarem de imediato.
Augusto Mota, texto 13.4 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
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