domingo, 19 de maio de 2013

O Artifício da Loucura



Pareceu-me traição ter ficado encostado a uma coluna enquanto, bem dentro de mim, não aceitava a despedida. É sempre mais justo que seja eu a partir. Pelo menos disfarça-se mais a fraqueza. Assim fiquei triste e alheio e, de repente, comecei a achar tudo estúpido. Tudo, isto é, a vida a estação, o porteiro, eu a entregar um bilhete que foi separação  (era curioso que nas estações se pudessem comprar bilhetes de separação… Era curioso e estúpido!), a cidade lá fora com um Domingo que também foi nosso e eu outra vez só com a minha tristeza  e as mãos saudosas da mossa liturgia solar. Fiquei triste como um menino que enfrenta sozinho as ruas e as casas de uma cidade pela primeira vez. Por breves momentos caiu-me toda a vida em cima e não to consegui dizer quando o adivinhaste e me tentavas animar. É que eras ali toda a minha razão de ser, não só futura, mas de todo o passado.
 
De repente como que se justifica a utilidade de toda a inutilidade, como que se vitaliza  numa separação o dom subtil de um acto:
 
                                           “Dá-me um bilhete-de-gare-de-separação!”  
 
                              (O comboio rápido parte com atraso de dez minutos).
 
Toda a vida se resume  a um atraso. Cada minuto de recuperação é uma viagem ao encontro da ligação para o infinito de nós.
 
 
 
Depois, vertigem de mim. Não sei quem fui. Perdi-me passeando até ao cansaço físico. Conversei alheado de tudo, porque eu era ainda todo-outro. Não estava, nem ia. Era. Era nas mãos a saudade. Era nas mãos o sol. Era nas mãos a calma da vegetação que nos acolheu em silêncio. Sobretudo era, sinto-o, o respeito cada vez mais nítido das nossas duas e amplas fontes de vida. Isto é, cada vez mais consciência de um respeito e de uma naturalidade.
 
É bom que este processo de individualização seja comum e paralelo, porque é beleza. E beleza é necessidade que não morre, já que ser perene é parte integrante e principal de sua própria definição. E aqui não será erro definir com o definidor. Beleza é beleza. Um copo é um copo. No entanto só percebemos bem o copo quando o amamos em nosso amor e necessidade, por via da água. Percebemos, então, que o copo tem em si uma função, para além do existir em vidro. Realiza-se quando tem água e serve uma transição.
 
 
 
Hoje existir é ter audaciosa liberdade, mas cá dentro. Ama-se, mas cá dentro. O que se vê é sempre fruto de outras coisas que nada têm a ver com amor. Este é de dentro. Mas também é das mãos. Este é de dentro. Mas também é dos olhos. Olhos e mãos são a conjugação gramatical para quem não sabe dizer outros, ou nenhuns pronomes pessoais. São o eu absoluto feito tu. São o processo maravilhoso de outra forma de poesia, porque maior. São em sua insaciável e plástica substância a identificação total dos sub-planos e dos super-planos de nossa física e metafísica existência.
 
Na confiança que conhece se funda a confiança na vida. Neste voluntarioso acto de aceitação se baseia, pois, a amizade e a energia que dominamos. A amizade de sangue quebrou barreiras, não de escrúpulos, mas de sociedade, deixando que se fortaleça cada vez mais o respeito de e a algo que não se pode definir, mas que parece radicar em nossa própria carne e em nosso próprio espírito.
 
 
 
Agradeço-te, mulher ou cidade, a saudade que me fazes ter de ti. Mas saudade-sempre. Hoje e quando habitas em meus olhos pelo favor da distância, mas da física. Por isso me torço e me envolvo e me canso para me dar todo à memória da tua presença. Fixo, porém, a vista numa escada e tenho saudade de ti. Fixo a vista outra vez na escada e tenho saudade de ti. Por isso quando estou longe, ou abstracto, pode ser por saudade de ti. Às vezes é de mim. Por pena de mim. Por morte de mim. Para vida de mim.
 
 
 
Tudo é tão estranho e subtil, hoje! Hoje o quê? Hoje, sobretudo. Hoje que existo por dom da palavra e da distância verbal de meus desejos e sentimentos. Por isso estou calmo. Talvez por não saber nenhum pronome pessoal para a conjugação do nosso verbo. Calmo por saber que esta ignorância é douta em sua maravilhosa e natural sublimação. Não há castigos, nem promessas do mestre. Há um existir em mãos no sol, em mãos na água, em mãos no fogo, em mãos na terra. Em nossas mãos existe o favor dos pontos cardeais. Por nós o norte, por nós o sul, por nós o leste, por nós o oeste.
 
Assim virados para o mundo em tal favor, corramos dentro de nós mesmos e abracemo-nos lá onde as mãos parecem calar-se, por grandeza ou complexo, mas onde os olhos já são suficientemente grandes para se aceitarem de imediato.
 
 
Augusto Mota, texto 13.4 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
 
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
                            

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