O JARDIM DAS PALAVRAS
É com orquídeas que
se sagram as mãos e os frutos que colhemos nas tardes de Janeiro, quando as
árvores já aguardam o abrolhar primaveril e as plantas mais exóticas iludem as
estações do ano com a explosão do seu artifício floral. Sempre que os jogos
poéticos das palavras e dos perfumes mais ténues se articulam, de viva voz,
sobre um peito nu, a sintaxe que combina as frases do discurso é já outra. Por
isso as relações entre as flores, as mãos e os poemas se confundem nas
alegorias e nas alegrias da jardinagem que enfeita as cidades do nosso querer.
Enfeitamos de odores as dores que
disfarçamos de flores. Enfeitamos de flores os odores que disfarçam as dores.
Enfeitamos as dores com os odores das flores.
É esta arte de jardinar as palavras em
rectilíneos canteiros que dá sabor novo aos frutos que acolhemos em nossas mãos
e depositamos, com carinho, na cesta de vime que os transportará ao mercado de
todas as sensações. Flores e frutos são vivências de um mesmo ciclo da natureza
que ajudamos a renovar com enxertos da nossa memória. Flores e frutos são,
também, as palavras enxertadas de experiência que deixamos deslizar pelo corpo
fora, como se elas pudessem lavar as angústias que povoam os bairros degradados
das cidades invisíveis que ontem construímos.
Tanta palavra escondida nas orquídeas que
descobrimos, por mero acaso, ao pôr-do-sol! Entre brincos-de-princesa e cálices-de-Vénus, elas esperavam a
nudez de um gesto que confundisse o seu aroma suave com o calor rosado dos
frutos da nossa memória.
A ela, à memória, oferecemos, em ritual,
as primícias do nosso jardim interior!
Augusto Mota, texto 39 de «A Geografia do Prazer», 1999
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