segunda-feira, 20 de maio de 2013

O Artifício da Loucura

 

O teu nome é uma cidade e feroz a minha submissão ao teu desejo todo de mim. Estranha coisa esta a de uma pessoa viver a outra em si! Estranha ainda esta viagem contínua num comboio que viaja dentro de mim e eu dentro do comboio, ou à porta do comboio, ou ainda na saudade húmida de teus olhos dizendo adeus a mim que parto e sou comboio.
 
Sou fora e dentro, por vontade de tuas mãos e de teus olhos que não me  deixaram parar mais e arrebatam a velocidade do monstro de ferro para a estação secreta de ti, lá onde moram os meus desejos e onde nos costumamos encontrar por entrega mútua, ou, apenas, por permissão do chefe da estação. Somos, assim, mestres  neste viajar cósmico dentro do nosso próprio corpo, fazendo das veias pulsações imediatas, ou cavalos a arfar depois de corrida desenfreada. Aí habitamos por necessidade de nosso próprio conhecimento, sem palavras, sem actos fortuitos para lá do simples movimento antecipador dos olhos e da boca. É, necessariamente, um admirar da paisagem esta nossa estupefacção perante o nosso mundo e tudo o mais.
 
 
 
Mas só não me contento, cidade minha, quando ainda vou em corrida desenfreada à porta da minha carruagem e te arrasto, pelos olhos, para fora daquelas súbitas colunas que servem, apenas, para me quebrar a ilusão e não deixar que o cais corra, perpétuo, ao lado de mim-comboio. Se assim não fosse tinha-te sereno em minha posse de viajador. Saberia levar-te até onde os guias turísticos não sabem ir e, ambos, podíamos descobrir as regiões inóspitas de nossas sensações-últimas. Toda a geografia é uma sensação, antes de mais. Só depois é que se converte em ciência. Depois, quando a alma da poesia deixa ver como tudo, afinal, é assim mesmo, geograficamente poético, sem necessidade, portanto, de intervenção dos livros dos poetas, que nos ensinam essas coisas bonitas a que os homens de ciência chamam inutilidades. Nem são inutilidades, nem nos quebram o contacto com o real. Antes pelo contrário.   
 
Bestas de tacto, como somos por natural formação, queremos tudo visto com os olhos. Exigimos a permanência num estado de contracção animalesca, como se todos gostássemos de viajar num vagão de mercadorias.
 
Quantos compreendem que o mundo, aqui o cais do meu desejo, é visível ainda agora da janela da minha carruagem? Sabe-lo tu que vês os acenos repetidos até à saciedade das colunas. Depois a geografia e o tempo não me deixam fazer paragem especial para te apertar e dizer baixinho: a viagem vai continuar!
 
 
 
Sei que a viagem vai continuar. Disparei em força para dentro de mim mesmo. Mas descansa, vais comigo. Foi por tua causa que comecei a viagem. Novo ciclo se inaugurou desta vez. Repara como tudo tem sucedido: ciclos consecutivos de nós, em volta de nós, até nós. Partimos deles para chegar a eles. Irradiação, por choque, para auto-conhecimento. Neste ciclo parti de ti com a certeza  infinitamente grande que já és meu sangue. Agora tudo tem de ser pensado a partir dos pés. Por camadas. Devagarinho. Quando chegar à região da cabeça gritarei a vitória que me é devida. Nem tenhas medo de mim, nem da viagem. Sei que prometes amparo para o renascimento total. Mas tudo é demasiado complexo e as palavras e as atitudes ficam, muitas vezes, aquém da luta surda que corrói as mais belas intenções. É a paga de certas virtudes que se possuem. Paciência! Mas digo-te que a viagem é perigosa. Já envolve a significação total. É viagem-viagem mesmo, contigo pela vida, e viagem-outra-viagem, comigo para comigo. Tudo é necessário conciliar em segredo e secreta esperança.
 
 
 
Quando falho estou, apenas, a estabelecer o equilíbrio. Nem é orgulho, nem total sabor a derrota. Por vezes há forças ocultas que nos dominam inesperadamente. Só a experiência nos povoa de certezas.
 
 
 
Depois disto tudo o que me resta? Rodear de pássaros e flores as nossas próprias crianças que nos esperam na praia muralhada? Mas tudo me faz tremer ainda de grandeza e pureza, dessa recta pureza de intenções e gestos que se define por ela mesma como encontro, como satisfação, como povoamento de tudo, ou vingança, ou, ainda, ajustamento de olhos e mãos.
 
Nós devemos ser como esses amantes da noite espanhola e portamo-nos como meninos terríveis que não aceitam a muralha em volta da praia de seu sentimental existir. Por isso nadamos, em perpétuo movimento, ao encontro dos adolescentes que, nus e cobertos de flores, nos esperam do outro lado do rio para se unirem a nós, ou nos saudarem com pássaros e liberdade. Eu sou como eles. Talvez por isso me tenha ficado esse jeito estranho de criança amuada. Que admiração! Há tantos anos a tentar atravessar o rio, mesmo sem saber nadar! Tenho a impressão de que há gestos e intenções que nos ficaram do ventre materno, ou então viemos ao mundo com os olhos demasiado abertos para tudo. Por isso, se fraquejamos, arranjamos logo uma auto-defesa que se chama imaginação, ou poesia, ou arte, que identifica os nossos desejos e os sublima e no-los deixa gozar, mas de outra maneira. Essa é ainda uma outra via de acesso ao rio, ou à fonte de nossa infância. Mas é, também, puro gozo.
 
Talvez o contacto demasiado directo com a natureza me tenha excitado o sexo e a sensibilidade. A tudo cheguei, com poucos anos, por uma via que fez da imaginação um outro sentido para me unir à verdadeira realidade e fez da sensibilidade uma apurada timidez, ou beleza, ou medo da realidade criada e não transcendida.
 
 
 
Quando se nasce pode-se morrer, subitamente, se não habitarmos os dias com flores nos dedos e sangue nos olhos do esforço da germinação. A poesia e a botânica dizem que assim é. As mãos completam, por contemplação, semelhante ciclo deste perpétuo retorno. Por isso um dia havemos de contar coisas grandes um ao outro, no momento exacto em que encontrarmos os justos meninos que já nos começaram a acenar do outro lado do rio. E a travessia tem que ser total, sem medo de afogamento, nem fugas precipitadas. Nada pode ser estragado por dever para com as nossas próprias mãos, que já vão aprendendo o gesto da remada. Só então faremos de nossos desejos nossos desejos e não um desfrutar de complexos sucessivos que embotam a lucidez e criam verrugas na palma das mãos.
 
Não façamos do que deve ser eterna floração mera reprodução.
 
 
Augusto Mota, texto 13.6 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
 

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