sábado, 11 de maio de 2013

O Artifício da Loucura


 
Com tudo isto já tenho lágrimas na garganta e rostos no coração. Sou nem sei quem nesta escolha de um figurante para mim mesmo. Suicido-me nas minhas próprias lágrimas como se tecesse uma corda de água para me enforcar. Mas, então, hesito e espero. Tudo se dissolve na ausência da memória e na exigência do querer.
 
Quando entornaremos o passado pela vertente abaixo de nossa vida já vivida? Assim tecemos roupa nova para as mãos e outros olhares para os gestos. Depois há coisas que se perdem pelo espaço fora e eu já tenho ciúme das aves. Animais poéticos somos nós! Para quê efeminar um sentimento? Oh, pobres aves! Não lhes dêem liberdade e verão como hão-de morrer em nossas próprias mãos assassinas!
 
Mas eu queria uma flor! Grito angustiado por uma flor e confundem-me com um louco. Vem, só para mim, um hospital e tanta enfermeira! Ah! deuses e demónios, dai rodas a minhas mãos que voarei pela cura dentro, perpetuamente pela cura dentro! Ah! mas vivo louco por mim abaixo, louco por mim acima!  Ninguém  sabe,  parece-me,  que me arrasto com tanta dor desde que, pela primeira vez, descobri que algo me estava a ser negado. Criei, então, qualquer coisa com estas minhas verdadeiras mãos e, assim, um mundo se me abriu: conversando com as flores descobri em mim algo de diferente.
 
                              ( Eu de flores só lhes percebo os olhos ougados! )
 
Assim o sexo dos animais foi para mim a primeira afirmação de que qualquer coisa nos estava a ser ensinada de outra maneira. Assim eu me fecundei em flores e pássaros.
 

Alguém me diz agora: “Vem aí um hospital!”. Ah! flores, fazei-me habitar em vosso cálice ou sentirei todas as ambulâncias do universo gritarem por mim,
 
                                                GRITAREM  POR  MIM !             
 
Loucura, sábia loucura esta que me arrebata todo, mas todo, para os minutos em que me sinto respirar sem mim. Invejo os átomos que se escondem nas sensações, nas agora estúpidas sensações que não atravesso com o olhar.
 
“Ai, assassino, atómico assassino, procuram-te por teres roubado o maior ciclotrão da Europa!” - isto parecem dizer-me as palavras que ainda não chegaram à minha razão.
 
É isso, sou um homem permanentemente desacreditado. A história e a glória de minhas mãos pertence sempre ao fracasso. Vivo nem sei como. Tenho os olhos a ocidente e o sexo a oriente. Assim não sei como governar os segundos e os anos. Vou desistir de viver. É que não arranjo maneira de fazer de tudo isto um diálogo permanente com a sensatez da minha própria razão.
 

Dói-me tudo hoje. Tudo. O norte onde não habito, porque estou no sul. O sul que não habito, porque estou no norte. O sexo e os olhos é que parecem estar parados. Fui vítima daquilo que não me deram: a unidade de mim quando jovem criança. Deviam ter-me prendido a imaginação e os dias às pernas das mesas. Fiquei demasiado senhor e desconfiado daquilo que tocava. Depois dei nova grandeza (outra grandeza) àquilo que queria distante, ou sabia distante e queria perto das mãos. O  mundo revelou-se-me demasiado desfeito, demasiado inoportuno para o que eu já sabia. Entrei cedo demais na música das flores e no círculo dos segredos mais íntimos do universo.
 
Tudo se reduz, afinal, ao relativo de nossas sensações, ao tempo exacto de nossas sensações. E como gostaríamos de as prender, ou matar, quando elas se impõem à memória com uma permanência exacta, viva, real, quotidianamente  exasperada. Assim concluímos tanta coisa errada!
 
Augusto Mota, texto 13.2 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964

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