Com tudo isto já tenho lágrimas na garganta e rostos no coração. Sou
nem sei quem nesta escolha de um figurante para mim mesmo. Suicido-me nas
minhas próprias lágrimas como se tecesse uma corda de água para me enforcar.
Mas, então, hesito e espero. Tudo se dissolve na ausência da memória e na
exigência do querer.
Quando entornaremos o passado pela vertente abaixo de nossa vida já
vivida? Assim tecemos roupa nova para as mãos e outros olhares para os gestos.
Depois há coisas que se perdem pelo espaço fora e eu já tenho ciúme das aves.
Animais poéticos somos nós! Para quê efeminar um sentimento? Oh, pobres aves!
Não lhes dêem liberdade e verão como hão-de morrer em nossas próprias mãos
assassinas!
Mas eu queria uma flor! Grito angustiado por uma flor e confundem-me
com um louco. Vem, só para mim, um hospital e tanta enfermeira! Ah! deuses e
demónios, dai rodas a minhas mãos que voarei pela cura dentro, perpetuamente
pela cura dentro! Ah! mas vivo louco por mim abaixo, louco por mim acima! Ninguém
sabe, parece-me, que me arrasto com tanta dor desde que, pela primeira vez, descobri que algo me estava a ser negado.
Criei, então, qualquer coisa com estas minhas verdadeiras mãos e, assim, um
mundo se me abriu: conversando com as flores descobri em mim algo de diferente.
( Eu de flores só lhes percebo os olhos ougados! )
Assim o sexo dos animais foi para mim a primeira afirmação de que
qualquer coisa nos estava a ser ensinada de outra maneira. Assim eu me fecundei
em flores e pássaros.
Alguém me diz agora: “Vem aí um hospital!”. Ah! flores, fazei-me
habitar em vosso cálice ou sentirei todas as ambulâncias do universo gritarem
por mim,
Loucura, sábia loucura esta que me arrebata todo, mas todo, para os
minutos em que me sinto respirar sem mim. Invejo os átomos que se escondem nas
sensações, nas agora estúpidas sensações que não atravesso com o olhar.
“Ai, assassino, atómico assassino, procuram-te por teres roubado o
maior ciclotrão da Europa!” - isto parecem dizer-me as palavras que ainda não
chegaram à minha razão.
É isso, sou um homem permanentemente desacreditado. A história e a
glória de minhas mãos pertence sempre ao fracasso. Vivo nem sei como. Tenho os
olhos a ocidente e o sexo a oriente. Assim não sei como governar os segundos e
os anos. Vou desistir de viver. É que não arranjo maneira de fazer de tudo isto
um diálogo permanente com a sensatez da minha própria razão.
Dói-me tudo hoje. Tudo. O norte onde não habito, porque estou no sul. O
sul que não habito, porque estou no norte. O sexo e os olhos é que parecem
estar parados. Fui vítima daquilo que não me deram: a unidade de mim quando
jovem criança. Deviam ter-me prendido a imaginação e os dias às pernas das
mesas. Fiquei demasiado senhor e desconfiado daquilo que tocava. Depois dei
nova grandeza (outra grandeza) àquilo que queria distante, ou sabia distante e
queria perto das mãos. O mundo
revelou-se-me demasiado desfeito, demasiado inoportuno para o que eu já sabia.
Entrei cedo demais na música das flores e no círculo dos segredos mais íntimos
do universo.
Tudo se reduz, afinal, ao relativo de nossas sensações, ao tempo exacto
de nossas sensações. E como gostaríamos de as prender, ou matar, quando elas se
impõem à memória com uma permanência exacta, viva, real, quotidianamente exasperada. Assim concluímos tanta coisa
errada!
Augusto Mota, texto 13.2 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
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