Entrega-te à subtileza das palavras, pois sou eu hoje que
me quero lá por tua e única via. Porque hoje estou contigo e estar contigo é
sofrer contigo. Assim, é o tempo da poesia e o frio da rua que me fazem entrar
em ti e derramar as mãos em tua dor. Tenho-as frias, mas é bom que sintas em
teu ventre a criação dos meus dedos. Em cada partícula de mim há uma chama que
sabe iluminar por dentro. O calor virá depois. Este frio inicial é génese e
força.
Isso, deixa tremer teu corpo por dentro. É justo. Em cada dor sentirás
um aproximar de mim. Nem fujas, por cobardia ou pudor. Muito menos por vaidade.
O frio das minhas mãos vai já na raiz do teu peito, afagou o coração (afinal não passa de órgão puramente
fisiológico!) e sinto-me a penetrar-te a cabeça. Feliz esta sensação em novo
espaço cósmico. Está fria e baralhada por dentro. Sacudiram-te violentamente.
Se é cólera momentânea, chora para
dentro, morde os lábios e derrama o calor das lágrimas em minhas mãos. Com elas
assim húmidas saberei plantar flores nas regiões mais agrestes da tua alma.
Vês, estás a ser vítima de nunca as ter sabido lá pôr, mas sozinha. É natural
que sofras tardiamente. Nem por isso te abandones. Há flores para Verão e
flores para Inverno. Estas deixa-mas livres em minhas mãos venenosas. Venenosas
porque são tudo e o infinito de mim.
Vagueio já todo na região de teus olhos, mas por dentro. Todo por
dentro. E continuas a estremecer como uma cidade assediada. Estás a reagir bem ao meu contacto. Isso,
abandona-te, lúcida, a mim. Nem me digas que não és digna. A dignidade é, no
fim de contas, a outra consciência de nós.
Estou e continuo dentro de ti. Em teus olhos, em tua boca, na adoração
primaveril do sexo. Deixa-me usar todas as palavras! Sinto-me feliz nesta
lúcida consciência de mim. Para que recuas, então? Sim, para que recuas em ti?
Queres regressar toda aos pés e viver árvore na cidade? Lembra-te que estou e
habito por minha e douta vontade em teu cérebro. Possuo a consciência de ti, a
tal outra consciência de ti que não deixarei escapar de minhas mãos, embora
frias e retardadas nos movimentos. Descerei contigo, se preciso for, à região
dos pés, sairei todo de ti, caminharei a teu lado, desconhecido, como cidadão
irreverente, mas só para te mostrar a consciência de ti, a tal que deixas
arrastar por fraqueza, ou vaidade, ou falta de flores em tuas inóspitas regiões
do cérebro. Queria mais. Que sofresses com essa consciência que é
verdadeiramente humana, a humaníssima e justa consciência poética. Só a esse nível
existe drama. Pode ser, na verdade, paralelo ao outro, ao que habita no
exterior de nós e das coisas. Pode, até, provocá-lo. Mas a raiz existencial do
drama é uma fonte de vida, é um escorrer de sangue até aos pés, enquanto o
espírito, alimentado pelo sexo e pelas flores, sobe em nós, lúcido, e triste
pela humilhação das madrugadas.
Ai, esta voragem dos dias! Este perpétuo veneno em minhas mãos,
dúcteis, insidiosas, mas alegres pelo orvalho de tudo o que fortaleceste em
mim! O ritmo agora é outro na verticalidade dos dedos. As unhas andam mais
polidas pelas ânsias da noite e debato-me e arranho-me por os olhos não
alinharem as perspectivas todas com os teus. Mas isto só por ausência física.
No resto sou fraterno em minha dádiva surda, em meu calor que compartilho na
mesma com o espaço que devias habitar. Nem há desperdício porque te sei. Por
isso, tudo é natural e a emoção disfarçada da partida e da chegada é sempre uma
viagem só para os olhos.
O minuto da separação é pálpebra que se fecha para sonhar a realidade.
O apito da locomotiva, por vezes, é que tira sabor às coisas. Mas o beijo leve
e quente no cais da estação é ainda o mais nítido regressar à realidade. É um
outro acordar para melhor dormir sobre as recordações.
Tanta coisa te disse em teu secreto interior. Se ainda te dói a cabeça
é outra a dor. Agora fui eu quem teve a
culpa. Habitei muito tempo no plantio das flores e ardem-me as mãos com os
soluços de teu sangue. Vou retirar-me. Mas vou sair, disparado pelo teu olhar
humedecido, em direcção ao mar e ao horizonte. Isso, abre bem a janela dos teus
olhos e a outra, a do quarto. Enquanto vês os pássaros hesitando contra o vento
e o voo, transformar-me-ei na distância deste perto que nos incendeia os
pensamentos.
(Ah! Já me esquecia de lavar as mãos e o sangue. Ficarão rosas
vermelhas em tua memória, como secreto testemunho desta inesperada visita
dentro de ti).
Agora já sou pássaro acenando asas ao vento e aos teus braços
escorridos de rosas e lágrimas.
Augusto Mota, texto 13.5 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
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